Diogo Álvaro Ferreira Moncorvo, nome no RG do rapper baiano Baco Exu do Blues, passou por um período de turbulência pessoal há dois anos. O sucesso de público e crítica obtido pelo disco Bluesman, de 2018, atraiu sua parcela de haters, o que deixou o versejador abalado.
“Fama é uma faca de dois gumes. Pode te ludibriar ou te enlouquecer com críticas malvadas,” teoriza em ritmo de prosa.
Baco caiu em depressão, e os muitos quilos a mais por pouco não evoluíram para uma diabetes. A solução foi deixar o centro de São Paulo, onde morava, e retornar à terra natal, Salvador, onde se reconectou com amigos de adolescência e pôde focar no trabalho.
E que foco. Na última semana de janeiro, Baco lançou QVVJFA? – sigla para “Quantas Vezes Você já foi Amado?” – um trabalho que, como o próprio nome indica, tem o amor como tema ao lado de crítica social – afinal estamos falando de rap. Baco preparou outro álbum, Bacanal, que ainda não tem previsão de lançamento e que define como “bem doido. É mais denso e leva as pessoas para camadas mais profundas. Isso nem sempre é confortável.”
O universo hip hop – que inclui, além da música, a dança e as artes gráficas – passou por um longo período de evolução desde que foi criado nos Estados Unidos no início dos anos 80. Surgiu por uma questão de necessidade: quando o Governo Reagan cortou os subsídios para o ensino musical nas escolas, os jovens negros americanos se voltaram para os toca-discos e as rimas nas quais, a princípio, retratavam a situação precária em que viviam. A ascensão social desses versejadores alterou o tema de suas letras, que passaram a contar histórias de superação e hedonismo.
O rap hoje é a música pop americana, seus artistas são reverenciados como os roqueiros das décadas passadas, e praticamente toda canção de sucesso traz uma batida ou participação de um rapper. Uma mutação que não tem sido diferente no Brasil, que conheceu o rap de modo mais profundo no final da década de 80. Tanto o gênero americano quanto o funk carioca tornaram-se mais palatáveis para as gerações seguintes, fossem eles militantes (Emicida ou Djonga, por exemplo) ou mainstream (Projota, Rael).
Baco Exu do Blues tem a empáfia e a marra dos rappers militantes, mas suas composições são de fácil assimilação. Em resumo, o Baco é pop. Há muito da sonoridade da atual música negra americana (o R&B ou urban) aliada a sonoridades afro-brasileiras, como o samba e os ritmos baianos.
A qualidade das letras e as citações literárias também fazem a diferença, embora sejam constantes nos versos de outros grandes nomes do gênero. Esú, de 2017 (o nome faz uma referência a Jesus, que também foi tema de Yeezus, do rapper americano Kanye West) citava obras como Capitães de Areia, de Jorge Amado, e Macunaíma, de Mario de Andrade.
A voz de Vinicius de Moraes é escutada em Imortais e Fatais 2. Os versos “ah, bem melhor seria viver em paz/ Sem ter que sofrer, sem ter que chorar”, de Tempo de Amor, se tornam um manifesto contra o racismo e a violência. “Coloquei para um lugar de fala do jovem negro”, explica.
Outros temas nascem da cultura pop. A inspiração para Inimigos, que traz um sample de Tenha Fé Pois um Dia Lindo irá Nascer, sucesso de Jorge Ben Jor gravado pelos Originais do Samba, foi Darth Vader, o soturno vilão de Guerra nas Estrelas. Mas há também muito da vivência pessoal. Como Mulheres Grandes, em que fala de “meninas que bebem pinga e escutam Ludmilla”. “É sobre um sujeito que se diz mulherengo, mas no fundo é um fraco,” explica. “Minhas vivências e dores me inspiram. Um rolê na rua, uma saída para jogar dominó no barzinho.”
QVVJFA? é um disco sofisticado musicalmente, com muito do soul moderno americano, jazz e tropicalismo. Baco declama e canta, o que o torna mais acessível para as grandes plateias. A faixa de abertura, Sinto Tanta Raiva, traz trechos do estilo bebop, vertente mais furiosa e experimental do gênero americano (“na verdade, me inspirei no desenho Cowboy Bebop e meu produtor trouxe essa referência”, explica) e a voz de Gal Costa na gravação de Lágrimas Negras, de Jorge Mautner e Nelson Jacobina, é utilizada em Lágrimas.
O ponto alto é Samba em Paris, dueto de Baco com a drag queen Gloria Groove, no qual a influência americana predomina sobre o ritmo brasileiro. Nessas horas, até a marra dá espaço para um elogio sincero. “Sou suspeito de falar da Gloria. Se fosse para rimar, ela iria me engolir na caneta. Se fosse para cantar, me bateria três vezes. É uma artista que olho e penso: ‘Ela é melhor do que eu em tudo’.”
O rapper não tem previsão de lançamento de Bacanal, cuja gestação se iniciou antes de QVVJFA?, mas adianta que o álbum terá um clima mais sombrio do que o atual.
“Se eu soltasse o Bacanal agora não teria controle da responsabilidade do peso psicológico que pode causar nas pessoas. Toco em pontos sensíveis, converso em lugares sensíveis, e nem sempre isso será confortável”, teoriza, recuperando a marra.
E quanto à fama? Aparentemente, não se trata mais de um problema.
“Meus amigos de Salvador não fazem ideia de quem é Baco Exu do Blues. Quando as pessoas me param na rua e pedem para tirar foto comigo, eles falam: ‘Famoso para mim é Xandi Avião, Ivete…’”, diverte-se. Mas em breve, muita gente saberá.