Todos os dias, pelo menos uma pessoa morre assassinada no Rio de Janeiro, uma cidade onde a violência endêmica já anestesiou a indignação e cultivou a desesperança.
 
Mas o assassinato de Marielle Franco, agora prestes a completar 48 horas, foi uma violência de uma natureza diferente — e terá repercussões para além desta semana e além do Rio, colocando a (in)segurança pública ainda mais no centro da agenda eleitoral.
 
A cena do crime todos já conhecem.  No centro do Rio, bandidos emparelham ao lado do carro e disparam. Marielle leva quatro tiros na cabeça e a perícia encontra nove cápsulas no local. Seu motorista também morre na hora.  Os criminosos fogem sem levar nada.
 
Nascida na favela da Maré — negra, bissexual, ativista dos direitos humanos, não exatamente com o mundo a seu favor — Marielle formou-se socióloga pela PUC-Rio e tinha um mestrado em administração pública.  Com 38 anos, já chegara muito mais longe na vida do que a vasta maioria de seus eleitores. Era um símbolo. Um símbolo de carne, osso e oratória. 
 
Sua liderança — dias antes denunciara a ação da polícia numa favela — incomodava muitas organizações criminosas, grandes e pequenas. Qualquer uma delas pode ser a responsável por seu assassinato. Num tempo em que a política ainda é fisiologia pura, concorde-se ou não com a agenda de Marielle, sua capacidade de representar seus eleitores traduz exatamente o que a democracia deveria ser.

Triste é não estarmos preparados para proteger Marielle. Essa tragédia foi um tiro na tênue esperança de que somos capazes de lidar com a divergência e cuidar de quem tem a coragem de enfrentar os problemas e trabalhar pelo bem público.

Pode-se concordar ou discordar das opiniões defendidas por Marielle. Inaceitável é o assassinato de uma mulher que nos mostrou ser possível superar as marcas da desigualdade e do preconceito. 
 
Mas para além da simbologia, o que diferencia este crime — o que o torna singular — é que Marielle era uma representante do Estado. Como vereadora, exercia o poder político em nome de seus 46 mil eleitores, mas, como membro da Poder Legislativo municipal, representava toda a cidade. 
 
Seu assassinato é um tiro em cada cidadão, uma afronta sem precedentes ao Poder Público e um escárnio à própria ideia de democracia.
 
Não surpreende o silêncio dos candidatos que se dizem machos e carregam a bandeira do combate à violência e ao enfrentamento dos graves problemas do país. São machos de pantufas. Coragem de verdade tinha a moça assassinada.
 
O Rio de Janeiro, com suas favelas há muito dominadas pelo tráfico, reflete uma elite que foi cúmplice da falência do Estado. Nossa grandeza parece restrita ao botequim, à praia e às rodas de música. Abraçamos a Lagoa de costas para o morro e para as ruas, onde se morre violentamente, estupidamente, inaceitavelmente.

Em sua análise sobre a experiência do Holocausto, Hannah Arendt concluiu que a passividade das pessoas de bem é o que permite que certos crimes aconteçam.   “O que contraria o bom senso não é o princípio niilista de que ‘tudo é permitido’,” ensinou a filósofa em seu Origens do Totalitarismo. “O que o bom senso e as ‘pessoas normais’ se recusam a crer é que tudo seja possível.”

Marielle, a mulher improvável, ultrapassou barreiras que nos parecem intransponíveis. Só não conseguiu superar a covardia do país que construímos, nem que seja por omissão. Marielle merece nossa gratidão. Sua vida, com aquele sorriso à larga, nos fez acreditar, brevemente, que podíamos ser inclusivos e justos. Sua trágica morte mostra que não a merecíamos. Fracassamos.
 
Marielle nos deixou um legado. Vamos escolher as pantufas? Ou honrar a sua história?

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