Foram meses de negociações e intensa queda de braço político, com direito a protestos incendiários nas ruas de Buenos Aires. Mas o Presidente Javier Milei acaba de aprovar no Congresso da Argentina a chamada Lei de Bases – seu amplo e ambicioso projeto de desregulamentação e abertura da economia, reduzindo a incerteza jurídica para os investidores.
A ‘Lei Ônibus’ – chamada assim em razão do grande número de artigos e temas de que trata – ainda precisa passar por regulamentações no Senado antes de seguir para uma nova votação na Câmara, depois das alterações feitas pelos senadores.
Os títulos e ações da Argentina tiveram um dia de recuperação hoje, depois das perdas registradas nas últimas semanas em meio à indefinição sobre o resultado da votação. Mas segundo os analistas, uma maior reprecificação dos ativos dependerá de progressos concretos no programa de ajustes.
O dólar paralelo – o blue –, que havia batido sua máxima histórica na semana passada, caiu 4%, fechando o dia em 1.245 pesos.
O resultado no Senado foi apertadíssimo – 36 votos a favor e 36 votos contrários. O voto decisivo coube à vice-presidente, Victoria Villarruel, também presidente da Casa.
O Libertad Avanza, partido de Milei, possui apenas 7 cadeiras no Senado contra 33 da oposição peronista, uma situação ainda mais adversa do que sua minoria na Câmara. Foi necessário aceitar uma nova rodada de concessões para conquistar o apoio necessário entre os oposicionistas.
Em vez de 40 privatizações, como na primeira versão do projeto, devem ocorrer apenas 8. Ficaram de fora, por exemplo, a YPF, a Aerolíneas Argentinas, o Correo e a Radio y Televisión Argentina.
Milei conquistou sua almejada autonomia para tomar algumas medidas executivas sem a necessidade de submetê-las ao Congresso, em áreas como gestão pública, economia e energia.
Com o projeto, o governo argentino terá uma maior margem para fazer ajustes, no lugar de depender apenas de ações no âmbito do Executivo, como as medidas no campo monetário e a contenção de reajustes de aposentadorias e transferências para as províncias. A sustentabilidade do equilíbrio fiscal requer medidas como a eliminação de subsídios nas tarifas de serviços públicos e a reintrodução de impostos.
“Foi uma vitória agridoce para o governo Milei, com a aprovação de um texto que, nos seis meses de tramitação, foi constantemente diluído,” escreveram os analistas do Citi em relatório.
O banco americano, contudo, observa que Milei vem conquistando avanços no Legislativo, a despeito da baixa representatividade no Senado. “Permanecemos ‘overweight’ em títulos argentinos.”
Na avaliação da Goldman Sachs, a “aprovação da Lei Ônibus e de parte do pacote fiscal, embora diluídos consideravelmente em relação à proposta original, representa um marco positivo no reequilíbrio da economia argentina.”
O Itaú estimou que a nova legislação poderá aumentar em 0,5% do PIB o resultado fiscal esperado para este ano, com o superávit primário encerrando o ano em 2% do PIB. Em 2023 houve um déficit de 2,7% – ou seja, de um ano para o outro, haverá uma reversão de quase 5% do PIB.
O projeto tinha originalmente 660 artigos. Nas negociações, dois terços deles foram retirados; ainda assim, sobraram mais de 200 no texto final votado pelo Senado.
O texto deve favorecer a entrada de capital estrangeiro. Há incentivos tributários, por exemplo, para investimentos em projetos de petróleo, gás e mineração.
A Argentina precisa recompor suas reservas internacionais, e, para isso, procura atrair os dólares de grandes investidores internacionais.
Nesse sentido, o governo celebrou a renovação até 2026 dos swaps cambiais com a China – um acordo que deve reforçar as reservas em até US$ 5 bilhões.
Também hoje, o Fundo Monetário Internacional aprovou a revisão do programa de apoio ao país e vai liberar US$ 800 milhões. A equipe econômica de Milei negocia um novo plano com o FMI, buscando reforçar o caixa em moeda forte.
O país não dispõe de dólares para dar fim aos controles cambiais. Na tentativa de fortalecer os superávits comerciais, o governo vem mantendo o câmbio oficial artificialmente valorizado.
“Sem dúvida, falando sobre a economia, foi o melhor dia até aqui para Milei,” disse à Reuters o analista argentino Christian Buteler, comentando a vitória no Senado. “O governo mostrou que consegue governar, mesmo tendo chegado ao poder em uma situação de minoria. Isso é algo positivo.”
A Lei de Bases contou com o apoio de dez governadores da coalizão Juntos por El Cambio, do ex-presidente Mauricio Macri.
“Precisamos dar um sinal claro para os mercados, para o mundo e para os argentinos de que nosso país está dando passos em direção ao equilíbrio fiscal, de que apoia o investimento privado e que vai modernizar as leis trabalhistas,” afirmam os governadores em uma nota conjunta.
Ainda segundo os governadores, uma “diluição (do projeto) pode afetar não apenas as finanças federais, como também as das províncias”.
Em outra notícia positiva, a inflação continua em trajetória de queda.
O índice divulgado hoje mostrou uma variação mensal de 4,2% em maio – um número ainda extremamente elevado, mas o menor desde janeiro de 2022.
Desde o início do ano, a alta de preços ficou em 71,9%. No acumulado de 12 meses, o índice sobe 276,4%.
Não se confirmaram, até o momento, as previsões de que o país voltaria aos dias de hiperinflação.
O resfriamento no ritmo de reajustes de preços deve-se em parte ao controle dos gastos públicos, o que conteve a espiral de retroalimentação inflacionária. Em termos reais, as despesas primárias caíram 29% nos 4 primeiros meses do ano.
A Argentina voltou a ter superávits fiscais – e nominais, não apenas primários –, mas boa parte do resultado se deve à não correção automática de benefícios previdenciários e salários do funcionalismo, que sofreram uma corrosão em, em termos reais, desde o início do governo Milei. Também houve um congelamento de obras públicas.
A terapia de choque da ‘motosserra Milei’ provocou também uma forte desaceleração na atividade econômica. O PIB deverá sofrer um recuo de 5% em 2024.
Ainda assim, Milei mantém índices relativamente elevados de popularidade, com aprovação de aproximadamente metade dos eleitores. (Em novembro, foi eleito com 55% dos votos.)
Os mais ricos, com poupança dolarizada, são favoráveis às reformas de abertura, enquanto a base da pirâmide social vem sendo favorecida com a queda da inflação e o pagamento de benefícios sociais – que, ao contrário de parte das aposentadorias, vêm sendo reajustados periodicamente.