Elza Soares, o gênio musical forjado na adversidade que emprestou versatilidade e cosmopolitismo à música brasileira, viveu uma história de amor com Garrincha e foi aclamada “a voz do Milênio”, morreu hoje em casa, no Rio de Janeiro, de causas naturais. Ela tinha 91 anos.
O legado de Elza inclui 34 álbuns, lançados ao longo de sete décadas de carreira, além do diálogo com os gêneros musicais que surgiram no mundo durante esse período.
Em um caso raro de ecletismo, Elza foi do samba ao rock, do funk ao hip hop e do jazz à música eletrônica, uma multiplicidade que fez com que a BBC desse a ela o epíteto de “a Voz do Milênio”, que dividiu com a americana Tina Turner.
“Não suporto rótulo, não sou marca de refrigerante”, costumava dizer.
Elza “foi uma das melhores cantoras de samba e uma das maiores guerreiras que eu conheci,” disse Zeca Pagodinho, um dos discípulos confessos da diva carioca. Elza morreu trabalhando. Na segunda e terça desta semana, havia gravado um DVD no Theatro Municipal, em São Paulo, e estava trabalhando num álbum com material inédito.
A certidão de nascimento de Elza Gomes da Conceição indica que ela nasceu no dia 23 de junho de 1930 na cidade do Rio de Janeiro. Mas ela afirmava que tinha outra nacionalidade – era “natural do Planeta Fome”.
Tinha somente 13 anos quando foi obrigada pelo pai a se casar com Lourdes Antonio Soares (mais conhecido como Alaordes), um sujeito que lhe impôs violências físicas e sexuais.
Elza trabalhou como encaixotadora numa fábrica de sabão e num manicômio, mas a miséria lhe batia à porta – a ponto de um de seus filhos morrer de fome.
Em 1953, quando outro de seus rebentos precisava de remédio e não havia dinheiro em casa, ela se inscreveu como caloura no programa de rádio do jornalista e apresentador Ary Barroso.
Como não tinha roupa apropriada, usou um vestido da mãe e prendeu o excesso de pano com alfinete. “Minha filha, de que planeta você veio?”, saudou Barroso, em seu tradicional tom jocoso. “Do mesmo planeta que o senhor, seu Ary, do Planeta Fome,” disparou.
Elza cantou o samba-canção Lama, de Paulo Marques e Aylce Chaves, e se tornou a vencedora da noite. “Senhoras e senhores, nasce uma estrela,” decretou Ary Barroso, vencido pelo talento daquela que inutilmente tentou humilhar.
O talento de Elza chamou a atenção de outra grande intérprete, Sylvia Telles, que a indicou para a Odeon. Na gravadora, se tornou uma das vozes do samba jazz ao adicionar improvisações típicas do gênero americano em canções como Se Acaso Você Chegasse, de Lupicínio Rodrigues e Felisberto Martins, ou emular as vozes de outros cantores – Miltinho e Dalva de Oliveira, por exemplo – em Boato, de João Roberto Kelly.
Eram efeitos que saíam por puro instinto, visto que Elza, pelo menos naquele tempo, era pouco versada em jazz. Ao se deparar com uma apresentação de Louis Armstrong no Chile, em 1962, Elza achou que ele a imitava. O encontro entre os dois rendeu uma das melhores anedotas de sua trajetória.
Armstrong a chamou de “daughter” (filha) e alguém sugeriu que a cantora o saudasse como “father” (pai). Ela, que não conhecia a língua inglesa, achou que a palavra significava um convite, digamos, a um ato libidinoso entre os dois. “Ruim de falar isso, hein?”, disparou. Quando o mal-entendido foi explicado, ela finalmente o saudou. Em seu período na Odeon, gravou discos espetaculares, como os divididos com o cantor Miltinho e o percussionista Wilson das Neves.
Foi durante sua temporada no Chile que ela conheceu o amor de sua vida, o atacante Garrincha – um romance que durou duas décadas e foi marcado pela polêmica. O atacante era casado, e Elza foi estigmatizada como “destruidora de lares”.
Mas ela era uma mulher dedicada, e por muito tempo foi a provedora do casal – Garrincha era o típico caso de jogador que passou a vida inteira assinando contratos leoninos, que lhe garantiram pouco sustento.
O alcoolismo de Garrincha foi outra fonte de dissabores, com suspeitas de abuso físico. “O problema ali era a bebida. Garrincha era um homem doente,” Elza me disse certa vez.
O casamento terminou em 1982 e rendeu um herdeiro, Garrinchinha. Nascido em 1976, morreu nove anos depois num acidente de carro.
“A carreira do artista é feita de períodos de ‘sim’ e ‘não’. Muitas vezes, o ‘não’ pode até ajudar você”, ela disse numa entrevista.
Elza Soares sempre sobreviveu a inúmeras eras do não, e saía fortificada dessas experiências. O reinado na Odeon se deu por terminado nos anos 70, quando a companhia apostou as fichas numa sambista novata mas espetacular: Clara Nunes.
Elza então migrou para a gravadora Tapecar e se reinventou como intérprete de samba tradicional ao gravar temas como Salve a Mocidade, de Luiz Reis (escola que, aliás, habitava o seu coração) e Malandro, de Jorge Aragão e Jotabê.
“Foi a partir da gravação de Elza que decidi largar meu emprego formal e seguir minha carreira como compositor,” disse Aragão.
A sambista Elza Soares se mostrou influente na geração que tomou o bairro boêmio da Lapa de assalto no início dos anos 2000.
“Elza foi uma força da natureza que se materializou por aqui. Uma mulher de muita garra que deixa pra gente um exemplo de luta e superação sem igual. Uma cantora maravilhosa que criou um jeito próprio de cantar e interpretar. Viveu muito tempo e produziu até o final da vida, nunca parou!”, o cantor Pedro Miranda, parceiro do grupo Semente ao lado de Teresa Cristina, disse ao Brazil Journal.
Os “nãos” se acentuaram nos anos 80 a ponto da cantora procurar Caetano Veloso em busca de ajuda financeira. Caetano a premiou com Língua, um dueto dele com a Elza registrado no álbum Velô, de 1984.
O renascimento gerou um novo show, Minha Vingança Sará Maligrina (o título é tirado do bordão do comediante Chico Anysio) no Madame Satã, templo da juventude punk e gótica de São Paulo.
“Eu entrava de peruca branca, tinha cenário de velas e saía de camburão. O público pulava tanto que o asfalto cedeu”, declarou.
A morte de Garrinchinha, no entanto, deu início a um hiato discográfico de nove anos. Em 2002, Elza voltou novamente à cena com Do Cóccix até o Pescoço, com direção artística de José Miguel Wisnik.
Ela passaria ainda por outro renascimento em 2015 com A Mulher do Fim do Mundo, álbum que a conectou com uma nova geração de músicos e compositores paulistanos – entre eles o guitarrista Kiko Dinucci e os autores Douglas Germano e Rômulo Fróes.
Guilherme Kastrup, produtor do álbum, é quem dá um testamento da divindade da cantora, ao citar um dos versos da faixa-título do álbum.
“Elza é um Orixá, e os orixás não morrem, transcendem. De onde ela estiver, vai continuar nos iluminando e sendo exemplo, farol e guia de vida, de força, de resistência e luta, mas acima de tudo, de muita alegria e amor. Não tinha tempo ruim que a derrubasse. Houvesse o que houvesse, Elza sempre cantava com toda sua alma a cada nota, a cada sílaba. E fez como disse, cantou e cantou até o fim. E alguém ainda tinha dúvida?”