Andava arrumando livros e topei com um, esquecido na estante do corredor. Era Vida que segue, crônicas de João Saldanha na época da Copa de 70, cobrindo o período em que foi treinador e os jogos da seleção, quando era comentarista da Globo e cronista do Jornal do Brasil.

“Vida que segue” era um de seus bordões, bom de usar quando a gente quer mudar de assunto e está conformado com o que se deixa para trás. João Saldanha foi meu guru e de muitos garotos de minha geração. Em 1969, quando ele aceitou ser técnico da seleção, eu vibrei. Tinha apenas 13 anos e o lia regularmente. Mas, principalmente, eu gostava de escutá-lo. Quando ia ao Maraca com meu pai, na saída voltávamos para o fusquinha ansiosos para ligar o rádio e não perder o comentário. Hoje, olhando para trás, percebo como foi importante ouvir aquelas palavras secas, tiradas certeiras, sínteses rápidas e agudas, que ressoavam fundo na mente de um adolescente saindo da criancice.

O poder de síntese de Saldanha era fabuloso. Muitas vezes, não havia tempo para um longo comentário e o locutor lhe passava a palavra já com o aviso para ser breve.
 
Certa vez, o Flamengo havia se arrastado em campo em um jogo com um time pequeno, dois dias após ter jogado uma partida caça-níqueis em Paris. João recebeu o microfone e falou: “Monsieur Zicô, Monsieur Adiliô, Monsieur Juniô, tá explicado o jogo.”
 
Outra dessas foi após um amistoso da seleção com a Iugoslávia. João, avisado que o tempo era curto, mandou: “Como Zico se chama Zico, o Brasil ganhou. Se ele se chamasse Zicovic, a Iugoslávia teria ganho.” 

João Saldanha, homem culto e entendido das estratégias do futebol, tinha uma curiosa atenção com detalhes. Uma de suas preocupações recorrentes era com as travas de chuteira. O jogador brasileiro, talvez por sua criação em campos de terra, detestava as travas longas e insistia nas travas curtas, o que os fazia escorregar em excesso. Uma noite, assistia um jogo na televisão e vi um zagueiro do Botafogo escorregar com uma bola dominada e o atacante entrar livre para marcar. Fui ouvir o comentário no rádio: João espumava de ódio. Até hoje vejo jogadores escorregando, não dá para entender.
 
Outro detalhe eram as cabeleiras ‘black power’, moda nos anos 70. João dizia que elas amorteciam a cabeçada. Se ele fosse técnico, ia mandar aparar o capacete. No “Vida que segue”, está outro detalhe que ele percebeu em Tostão: o jogador tinha as pernas grossas e as meias de nylon prejudicavam sua circulação. Ele mandou fazer meias especiais, mais frouxas. Esta percepção de coisas simples e a importância que ele dava a elas o fazia popular.

João, ao meu ver, não deixou herdeiros. A crônica esportiva, que é a iniciação à leitura de muitos, é muito pobre hoje. Apenas sei do Tostão, que escreve bons artigos na Folha.

Importante, vejo hoje, é que Saldanha era um dos consensos que unia o adolescente impertinente e o pai autoritário. Ambos sentem sua falta.

 
 
Flávio Salek é engenheiro de produção e mora no Rio de Janeiro.  Se estivesse vivo, João Alves Jobim Saldanha faria 100 anos ontem.