Estádio lotado, os torcedores balançavam os braços e entoavam, em alto e bom som, o coro infame:

–  “Mooooonooooo” (macaco em espanhol). 

A vítima, pela enésima vez, era Vinicius Jr., brasileiro de São Gonçalo, Rio de Janeiro. O cenário do ataque:  uma cidade do dito Primeiro Mundo. Valência, na Espanha. 

Foi a manifestação mais agressiva até o momento dos torcedores espanhóis. A primeira reação de todos os que se indignaram com as imagens foi a de pedir que Vinicius Junior deixe a Espanha.  

Vinicius Junior pode jogar onde quiser. É hoje um dos 5 maiores do mundo. Ontem mesmo, torcedores do Arsenal e do Manchester United se mobilizaram no Twitter pedindo sua contratação. 

A Premier League, Liga Inglesa, baniu por três anos dos estádios um torcedor que dirigiu insultos racistas ao jogador Sterling, do Chelsea, numa partida em Villa Park. Ou seja, até na Inglaterra, uma sociedade conhecida por sua divisão entre classes, talvez o ambiente fosse mais acolhedor.  

Fosse Vinicius um jogador de basquete da NBA, também encontraria um ambiente onde há jogadores extremamente politizados e alertas. Sua mobilização, e apenas ela, permitiu que o então proprietário da franquia do Phoenix Suns, Robert Sarver, fosse suspenso e multado depois que uma investigação comprovou que ele se referia a atletas ou funcionários com o uso de um epíteto racista. (A franquia acabou negociada e tem hoje novo controlador.) 

Um retorno ao Brasil seria inviável porque nenhum clube brasileiro poderia pagar o que Vinicius Junior recebe. E há também – não nos iludamos – manifestações racistas no Brasil. Mas aqui também há um ambiente mais acolhedor, em que pesem fatos notórios ocorridos nos últimos anos. 

A questão é: Vinicius Junior deveria deixar a Espanha? Ou lutar para que a Espanha deixe Vinicius Junior em paz?  

Logo depois do jogo, Vinicius desabafou em suas redes sociais: “Não foi a primeira vez, nem a segunda e nem a terceira. O racismo é o normal na La Liga. A competição acha normal, a Federação também e os adversários incentivam. Lamento muito. O campeonato que já foi de Ronaldinho, Ronaldo, Cristiano e Messi, hoje é dos racistas. Uma nação linda, que me acolheu e que amo, mas que aceitou exportar a imagem para o mundo de um país racista. Lamento pelos espanhóis que não concordam, mas hoje, no Brasil, a Espanha é conhecida como um país de racistas. E, infelizmente, por tudo o que acontece a cada semana, não tenho como defender. Eu concordo. Mas eu sou forte e vou até o fim contra os racistas. Mesmo que longe daqui.”  

De algum modo, essa atitude de Vinicius Jr tem a ver com um “cansaço de ceder” – o mesmo que fez Rosa Parks se recusar a levantar do assento no ônibus, nos idos de 1955, um pequeno gesto que incendiou a luta pelos direitos civis nos EUA.

Tal como Rosa, talvez a atitude de Vinicius de não deixar pra lá, em Valência ou em qualquer outro lugar, se torne um dos marcos antirracistas num universo doente como o do futebol – e ajude a fomentar uma legislação específica com punição exemplar a clubes cujos torcedores veiculem comportamentos racistas. 

Rosa Parks também não pretendia iniciar um movimento ou se tornar uma porta-voz. Ela só estava cansada de ceder. 

O futebol sempre foi um mundo mágico – mas também um espaço de preconceito e hipocrisia. Quem frequenta habitualmente os estádios sabe que o racismo e a homofobia estão ali, e que explodirão a qualquer momento no insulto individual ou no coro de uma torcida organizada. 

O problema é como lidar com isso.

Quem conhece a psique de um torcedor também sabe que só há um meio de reprimir manifestações racistas: punir seus clubes com perda de pontos, de mandos de campo, suspensão ou exclusão da competição. Só medidas tão duras quanto essas serão capazes de frear os racistas nos estádios, seja na Espanha ou em qualquer lugar.  

Um comentarista se referiu outro dia a uma mancha na história do Corinthians por conta de um coro que qualificava torcedores do São Paulo como “bichas”. Ele certamente frequentou aquelas mesmas arquibancadas e testemunhou idênticas ofensas ao longo de sua vida de torcedor. Acontece com todas as torcidas em todos os estádios. Manchados estamos todos. O universo do futebol nasceu manchado. Seja por calar, seja por compactuar. Ninguém vai extirpar o preconceito da cabeça dos torcedores de futebol no espaço desta e das próximas gerações. Mas há elementos para punir e reprimir, e eles precisam ser adotados.  

Mas alguma coisa está começando a mudar. Numa entrevista tensa com uma repórter da TV espanhola, um visivelmente triste Carlo Ancelotti, o técnico do Real Madrid, recusou-se a falar sobre o jogo até que a repórter lhe perguntasse sobre o que, para ele, era “mais importante”: o vexame racista dos torcedores.

Hélio Sussekind é jornalista.