Todo mundo achou estranho o que estava acontecendo na casa de Antonio Brasil.
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Primeiro houve a descoberta que chocou o bairro, e agora, algo ainda mais bizarro: a forma como o sr. Brasil reagiu aos acontecimentos.

Tudo começou há uns cinco anos atrás.. ou teriam sido 12?

É verdade que os Brasil sempre tiveram alguns familiares ricos, mas a família Brasil — aquela que morava ali na Lapa — sempre levara uma vida de classe média baixa.

Eram 12 filhos, que tinham que comer, vestir, estudar, ir ao dentista… O dinheiro era contado.

O sr. Brasil, um sujeito trabalhador e bem humorado, ganhava a vida na empresa mais generosa da cidade, a Crescimento SA.

Um dia, os vizinhos notaram que algo estava mudando nos hábitos da família. O sr. Brasil comprou um carro novo, e sua esposa, a dona Wilma, começou a frequentar salões mais caros — o que ficava evidente pelos penteados cada vez mais sofisticados. Os filhos, de idades variadas, saíram da escola pública para a particular. O shopping foi integrado à rotina da família — e não era só para o rolezinho das vitrines. As viagens internacionais começaram, cada ano para um lugar diferente.

A quem lhe perguntava, o sr. Brasil explicava que tudo ia bem na Crescimento, que ampliava seu faturamento 5% ao ano (às vezes 7%). Além disso, ele ganhara uma promoção. Já não era um funcionário comum; passou a fazer parte da lista dos ‘talentos emergentes’. O homem estava com crédito na praça, e os cartões chegavam pelo Correio, sem sequer terem sido solicitados.

O que pouca gente sabia é que — estranhamente e desafiando o senso comum — mesmo quando eram ‘pobres’ os Brasil sempre foram donos de grandes imóveis: uma herança de gerações anteriores que, diziam as más línguas, economizavam e investiam muito mais do que os Brasil de hoje.

Mas, em vez de gerarem renda, esses imóveis eram mais fonte de gastos e dissabores para a família. O maior imóvel era a mansão de Angra dos Reis, que o avô do sr. Brasil, o velho Getúlio, construíra com suas próprias mãos e o suor dos filhos, que trabalharam na obra. Nos últimos 10 anos, pelo menos, a mansão estava largada. Uma gangue de bandidos chegou a invadir o imóvel, sob a complacência do sr. Brasil, que demorou muito para chamar a polícia. Quando finalmente tomou uma atitude, o imóvel estava detonado: o teto estava caindo e a piscina teria que ser refeita — sem falar que o sr. Brasil, durante a prosperidade dos últimos anos, comprara o terreno ao lado e começara uma obra gigantesca para ampliar a casa — “a maior de Angra!” dizia, com ufanismo incomum.

Outro grande imóvel, a casa no lago da hidrelétrica de Furnas, em Minas Gerais, havia sido igualmente detonada por um tio maranhense do sr. Brasil, que depois de anos de ocupação, digamos, temerária, abandonou a casa — não por ordem de despejo, mas porque se aposentou e quis voltar para São Luís. (Dizem que o maranhense cobrava aluguel de outros grupos que sempre faziam umas festas de arromba lá: uns baianos e um pessoal muito esquisito do Rio. Mas o sr. Brasil nunca viu a cor daquele dinheiro. Ele só servia mesmo para pagar o IPTU, até que um dia não conseguiu mais — mesmo com sua prosperidade recente.)

Dizem que o sr. Brasil também tinha ações de vários bancos — outras heranças, claro — estradas, aeroportos e chegou a ter até uma mineradora e uma telefônica, mas isso deve ser exagero de gente que quer falar mal do homem, que quer pintá-lo como um imbecil que tinha patrimônio mas não sabia rentabilizá-lo, um ‘mau empresário’ que deveria ter acatado a velha recomendação: ‘quem não tem competência, que não se estabeleça’. Eu não acredito nisso. (Cá entre nós, eu gosto muito do sr. Brasil. Ele me dá bom dia todos os dias quando sai pra trabalhar, e me parece, num fundo, apenas um pai gentil — até gentil demais — que tem um sonho esplêndido de riqueza.)

Mas tudo mudou na casa do sr. Brasil nos últimos dois anos. A Crescimento teve problemas e começou a demitir gente. O sr. Brasil foi poupado, mas seu salário foi cortado. Tudo o que a família tinha experimentado de bom nos últimos anos estava em risco, de uma hora para outra.

Foi aí que alguém fez a primeira grande descoberta que chocou a vizinhança, da rua Oiapoque à ladeira Chuí: o sr. Brasil mentira, em parte, sobre sua prosperidade. É verdade que a Crescimento tinha lhe dado uma promoção, mas boa parte da melhora do padrão de vida da família havia sido bancada por empréstimos, que o sr. Brasil havia usado sem cerimônia.

Os credores — muitos deles, alguns de seus próprios vizinhos — agora estavam atrás dele: aumentaram os juros, e alguns queriam o dinheiro de volta. (O sr. Brasil pedira emprestado até aos filhos, que agora teriam que trabalhar para ajudar a pagar a dívida do pai.)

E foi então que, para aplacar os credores, o sr. Brasil tomou a decisão criticada pelas pessoas com mais anos de janela.

Premido por cortes, ele começou a atrasar as mensalidades das crianças, cancelou o plano de saúde, e deixou de pagar a conta do açougue. Sua mulher, que antes andava na rua de cabeça erguida, passou a se esconder. Seus filhos passaram a ir pra escola a pé — ele cortou até o dinheiro da passagem — e voltariam a sentir a pobreza na pele, mas o sr. Brasil só pensava que deixaria para eles uma grande herança.

Em vez de vender a casa de Angra, ele trocou o caseiro: arranjou um cara especializado em ‘dar um tapa’ em casas detonadas para logo voltar a alugá-la. Sobre a casa de Furnas, o sr. Brasil sabia ser ele próprio co-responsável pela destruição do imóvel, mas não queria, dizia ele, ’tomar nehuma medida drástica’. As ações dos bancos haviam despencado, as estradas estavam esburacadas e os aeroportos… bem, pelo menos aí o sr. Brasil, num acesso de racionalidade, já havia vendido metade.

Entre a família e o patrimônio, o sr. Brasil resolveu preservar o último — logo ele, que se gabava de ser um homem de esquerda, ‘que coloca o ser humano em primeiro lugar’, como dizia nas rodas sociais. Dizia que os imóveis eram ‘o orgulho da família’ e ‘invendáveis’. Dizia que os credores o aconselhavam a vender porque eles mesmos queriam ‘comprar barato’. E se apegava ao argumento de que, com caseiros melhores e gestores que pelo menos tivessem um bom diploma, as coisas poderiam ser revertidas.

O sr. Brasil, um patrimonialista convicto, era a prova viva de que a inércia governa o mundo.