A história ensina que tragédias e choques econômicos adversos podem ser uma alavanca para transformar países e colocá-los na rota da prosperidade.
Após a Segunda Guerra, a Coreia do Sul era um país pobre, devastado pelo conflito e pela longa dominação japonesa. Uma elite agrária dominava a política, tomada por corrupção, captura do Estado e populismo. Uma bem-sucedida reforma agrária foi o ponto de partida para a reconstrução do País em termos mais igualitários e produtivos, com remoção de privilégios e investimento maciço em educação.
Taiwan tem história similar, com os nacionalistas chineses lá chegando em 1949, após serem expulsos da China continental pelos comunistas, e ali realizando uma reforma agrária que derrubou a desigualdade e iniciou uma história de sucesso do mundo capitalista.
A grande fome da China, na segunda metade dos anos 1950, levou a mudanças nas regras de coletivização da produção que estão na origem da revolução econômica que transformou o País em potência econômica.
O fim da federação formada com a Malásia, em 1965, jogou a pequena ilha de Cingapura em posição de alta vulnerabilidade frente à (vizinha) China comunista. A fórmula da sobrevivência foi a abertura da economia, a exploração da vantagem locacional para se estabelecer como entreposto portuário, e o forte investimento em educação.
Nos anos 1970, a Nova Zelândia vivia uma vida sossegada, funcionando como uma provedora preferencial de laticínios, lã e carne ao Reino Unido. Quando esse país aderiu ao Mercado Comum Europeu e reduziu suas barreiras às importações de outros países, a Nova Zelândia entrou e decadência econômica: desvalorização cambial, inflação, recessão, disparada do déficit e da dívida pública.
A crise induziu uma agenda de reformas, levada a cabo durante duas décadas, que abriu a economia, aboliu velhos protecionismos e subsídios, e como resultado colocou o país nos primeiros lugares nos rankings de qualidade de vida e desenvolvimento humano. A vizinha Austrália seguiu caminho similar e colheu três décadas de crescimento ininterruptos.
O ponto comum entre esses casos é que a crise permitiu transformações em aspectos políticos e econômicos que representavam entraves ao desenvolvimento de longo prazo. Situações limites enfraquecem interesses previamente estabelecidos e permitem reformas.
A pandemia de covid-19 é um choque que explicita um problema central da sociedade brasileira: a nossa baixa coesão social. A crise atual representa uma oportunidade para que lideranças esclarecidas apontem um caminho de reforma que pode mudar a nossa trajetória recente de mediocridade econômica e agravamento das condições sociais.
O Brasil é uma sociedade dividida: diferentes grupos sociais têm baixa predisposição para cooperar visando solucionar os problemas coletivos. As pessoas não confiam umas nas outras, e não hesitam em violar regras para obter vantagens individuais. Construímos, ao longo dos séculos, uma sociedade dentre as mais desiguais e violentas do mundo.
Essas características estão refletidas no Índice de Segurança Interpessoal e Confiança, do International Institute of Social Studies. Esse índice procura medir a predisposição dos indivíduos para cooperar com grupos sociais distintos dos seus. Também indica o quanto os indivíduos evitam atitudes que violem normas de cooperação. Ficamos no 136º lugar entre 140 países.
Moldamos o Estado brasileiro à nossa imagem e semelhança. Ele não é um instrumento para mediar a solução de problemas coletivos buscando o bem comum. Nosso Estado foi balcanizado e transformado no locus do conflito distributivo de uma sociedade dividida.
Cada grupo social quer uma política pública que o beneficie, jogando a conta para os outros. O empresário e o profissional liberal querem pagar menos imposto, e mandar a conta para os outros. O político quer se reeleger, distribuindo benefícios sociais a seus eleitores, e mandar a conta para os outros. O servidor público quer ter salário de executivo de multinacional, e mandar a conta para os outros. A família de classe alta quer universidade de graça, e mandar a conta para os outros.
Mas ‘os outros’ somos nós mesmos, e o aumento do gasto público, de 11% para 20% do PIB entre 1991 e 2019, tem que ser pago com aumento da carga tributária e da dívida pública. Antes da pandemia, já tínhamos a maior dívida pública, o maior gasto público e uma das maiores cargas tributárias entre os países emergentes. Elas sufocam a economia. Não à toa, de 1980 a 2019 crescemos, em média, apenas 2,2% ao ano. Devido à recessão recente, o PIB em 2019 ainda era 3% menor que o de 2014.
Com baixo crescimento e frequentes recessões, fica mais difícil melhorar de vida pela via das oportunidades no mercado de trabalho, e se intensifica a busca por benefícios públicos bancados… pelos outros.
A regra é tirar o máximo possível do pote do orçamento público, e colocar o mínimo de dinheiro possível nesse pote, escapando do pagamento de impostos.
A pandemia agravou uma situação econômica e social que já era ruim: ceifou as vidas de milhares e a renda de milhões.
Mas ela representa, também, uma oportunidade para mudarmos nosso destino. Infelizmente, até agora estamos desperdiçando essa oportunidade. Talvez ainda haja tempo para mudar o rumo.
Todos os brasileiros foram afetados. Ainda que tenha sido mais dura com os pobres e vulneráveis, a calamidade gerou muita angústia e perdas também para os mais ricos.
Assim como nas trágicas situações de guerra e choques econômicos, esta pode ser uma rara oportunidade de unir um País dividido em torno de uma causa comum: a recuperação da saúde pública, o auxílio aos mais afetados e a recuperação da economia.
É preciso que haja um discurso claro por parte do Governo, que explicite que a nossa sociedade ficou mais pobre e endividada, e os nossos pobres, mais vulneráveis. A única forma de ajudá-los, e de recuperar a capacidade de crescimento, sem colocar o país numa situação ainda mais crítica, seria com reformas que, no curto prazo, vão cobrar algum sacrifício de todos, mas que no médio e longo prazo transformarão o potencial de crescimento e a nossa realidade de desigualdade extrema e pobreza.
Toda a sociedade seria chamada a cooperar, ficando explícito o quinhão de cada um. Seria necessário superar discursos extremistas, não indutores de cooperação que, de um lado, apontam que “a conta tem que ser paga exclusivamente pelo andar de cima” e, de outro, tentam legitimar benefícios privados, com argumentos do tipo “o meu subsídio não pode ser removido, porque vai eliminar empregos”.
As empresas perderiam benefícios tributários. Os profissionais liberais de alta renda, que pagam menos imposto por meio da “pejotização”, passariam a ser tributados como qualquer outro brasileiro. Os descontos do Imposto de Renda, que beneficiam os 10% mais ricos, deveriam ser extintos.
Programas sociais ineficazes, hoje capturados pela classe média, seriam fundidos em um “Renda Brasil” focado nos realmente pobres e necessitados: 12 milhões de famílias em situação crítica, hoje fora do radar das políticas públicas, poderiam ser atendidas sem impacto nas contas públicas. Mas isso só seria possível se famílias fora de situação de pobreza deixassem de receber alguns benefícios.
Políticas de desenvolvimento regional, que há décadas beneficiam apenas os ricos dos estados pobres, precisariam ser revistas e repactuadas.
Os servidores públicos, que não perderam emprego na pandemia, contribuiriam com redução temporária de salários. Uma reforma administrativa adequaria remunerações e benefícios à realidade brasileira. Supersalários e penduricalhos seriam fortemente restringidos. Militares não mais se aposentariam antes dos 50 anos de idade.
Quem recebe aposentadoria ou benefício social também não perdeu renda durante a pandemia. Além disso, os benefícios vinculados ao salário mínimo cresceram mais de 100% acima da inflação desde meados dos anos 1990. A contribuição desse grupo poderia vir da não correção do salário mínimo por dois anos.
As emendas parlamentares ao orçamento, que usualmente financiam investimentos de baixo retorno social e alto retorno eleitoral, seriam redirecionadas, por alguns anos, para financiar o novo programa assistencial ou para fechar desequilíbrios no orçamento.
Governos estaduais somente teriam suas dívidas com a União reescalonadas ou receberiam aval para novas dívidas se, antes, tivessem aprovado um conjunto mínimo de reformas da previdência e administrativa.
Um programa explicitando que todos dariam sua colaboração elevaria o respaldo político e explicitaria a atitude antissocial de quem tenta se safar e empurrar o custo para os outros.
Isso nos tiraria da crise com um Estado menos disfuncional e uma sociedade mais coesa e propensa à cooperação, com menos pobreza e desigualdade. O potencial de crescimento da economia aumentaria.
Até agora não nos saímos bem. O processo de decisão política atuou com base no cacoete de gastar mais e mandar a conta para os outros. O Auxílio Emergencial foi entregue a muito mais famílias que aquelas necessitadas, o auxílio a estados e municípios também foi exagerado.
O resultado foi a explosão da dívida pública. Nos próximos 12 meses, o Tesouro e o Banco Central terão que rolar dívida equivalente a 32% do PIB, e ainda conseguir financiamento para o déficit de 3% do PIB. Isso vai gerar mais dívida, mais impostos, mais inflação, mais juros e menos crescimento econômico. Novamente, a conta “empurrada para os outros” cairá no colo de toda a sociedade.
No desenho do futuro programa social ampliado, o “Renda Brasil”, ainda prevalece a atitude evasiva de querer dar mais benefícios sem dizer claramente quem pagará a conta. Como se fosse possível dar aos mais pobres sem tirar de ninguém. Estamos prestes a criar um programa social que, paradoxalmente, ajudará a aumentar a pobreza, caso se baseie em expansão de gastos insustentável.
Ainda há tempo de usar a crise para transformar o País. A alternativa é a estagnação e a perpetuação da pobreza e da desigualdade.
Marcos Mendes é pesquisador associado do Insper e autor de “Por que é difícil fazer reformas econômicas no Brasil?”