Em meados de 2009, Luis Stuhlberger e eu tivemos uma reunião com David Modest, que trabalhava no Soros Fund Management. Ao final da reunião veio a pergunta: “será que o Luis não poderia ir a Nova York conversar com o Soros?”

O pano de fundo era o seguinte: o mundo havia passado em 2008 pela pior crise do capitalismo. Somente a Grande Depressão de 29 havia sido mais drástica. Pior: a economia global claudicava em direção a uma recuperação tímida. O vigor de recuperações passadas parecia distante. A deflação era vista como um risco real.

Alguns meses depois estávamos em NY, no escritório de Soros na Rua 55. Tenho que confessar uma certa ansiedade em relação a esse encontro. Minha determinação firme era não abrir a boca, sumir na paisagem e só absorver todo o conhecimento que seria gerado. Retirei da estante minha cópia do “The Logic of Scientific Discovery”, do Karl Popper e dei uma revisada. Sabia da admiração do Soros pelo autor e não queria correr o risco de perder alguma referência que ele pudesse fazer.

Às 10 em ponto o Soros entra na sala. Cumpridas as devidas formalidades, começa um dos debates mais memoráveis que já presenciei: expansão de balanços de bancos centrais, crise do euro, limitações do modelo de desenvolvimento brasileiro, China… 

Foi quando veio a pergunta do Luis: “Olha, na minha opinião a gente tem um desequilíbrio grande entre ativos financeiros, apoiados na expansão dos balanços dos bancos centrais e ativos reais no mundo. Tem muito papel para cada unidade de ativo real. Alguma hora temos que reequilibrar isso. Se nada for feito, nem nossas contas nos bancos vão estar seguras. Já vimos algo parecido no Brasil. Meu medo é que a gente tenha um Plano Collor em escala global. Se isso for verdade, como nos protegemos?”

Prendi a respiração. Essa era “a” pergunta (ainda é).

Soros parou por uns segundos, sorriu e respondeu: “Sabe que já pensei muito nisso e a resposta é: eu não sei. Durante a minha carreira, sempre sofri nesses momentos de tumulto.”

Só para pensar um pouco: um dos maiores investidores de todos os tempos estava admitindo humildemente desconhecer a solução de um problema complexo na sua área. Do alto de seu conhecimento, ele podia ter saído com algo no estilo: “compra uma put worst of ouro, yen e treasury com um knockout no dólar australiano swapado em renmimbi pra neutralizar o risco de commodity”, ou alguma outra resposta complicada que eu não ia entender, mas, como vinha do Soros, tomaria como certa.

Na minha frente tinha alguém tão seguro de sua trajetória pessoal, tão “acima do bem e do mal” que não precisava fabricar resposta alguma. Alguém que, durante 50 anos de uma carreira estelar, havia explorado os limites de seu conhecimento e admitia livremente ter esbarrado em uma barreira.

O mundo desde então

A sabedoria daquele “não sei” começou a se revelar quase que imediatamente. Poucos meses depois, o presidente do Banco Central Europeu se comprometeu a fazer “whatever it takes” para preservar a integridade do Euro. Para os acostumados com banqueiros centrais circunspectos de linguajar opaco, a retórica e clareza eram surpreendentes. Abriu-se a caixa de Pandora.

Na verdade, a afirmação anterior é imprecisa. A caixa havia sido aberta faz algum tempo pelo Bank of Japan que, confrontado com uma deflação crônica, já havia extrapolado os limites da política monetária convencional. No entanto, o mercado tratava isso como uma peculiaridade japonesa sem maiores implicações para o resto do mundo.

O problema é que nosso ferramental intelectual (e prático) estava voltado para “lutar as batalhas de guerras passadas”, e a última grande guerra havia sido contra a inflação alta da década de 70.

Mesmo que não fôssemos monetaristas convictos, no ambiente pré-crise, se alguém perguntasse qual o impacto de colocar a taxa de juros a zero e quintuplicar o balanço dos bancos centrais, a conclusão quase inquestionável seria: bem mais inflação.

Isso seria parte da solução. Afinal, uma forma de ajustar o valor de uma dívida é através de juros reais negativos com a inflação corroendo seu valor aos poucos. Mas a inflação não apareceu. Muito já se escreveu sobre isso. Mas 3 fatores são apontados como as principais causas: tecnologia, demografia e globalização. Todos de natureza estrutural e duradoura.

O que fazer então? Primeiro tentamos o afrouxamento quantitativo (QE). Bancos centrais comprando diretamente títulos de dívida soberana. O ECB foi além e incluiu dívida privada, e o BOJ aumentou a aposta ao incluir ações (ETFs) nas suas compras.

Segundo passo: postular que o limite inferior de zero para a taxa de juros não existe e instituir juros nominais negativos. Com isso a teoria de finanças já vira de cabeça pra baixo. Funcionou? Até o momento, claramente não. A Europa, por exemplo, permanece desconfortavelmente perto de uma recessão mesmo com juros negativos a perder de vista.

Qual o próximo item na caixa de ferramentas? Ao que parece, eliminar a distinção entre políticas fiscal e monetária. Algumas vertentes mais “exóticas” incluem a chamada Modern Monetary Theory, que já foi rapidamente adotada pela ala mais à esquerda do Partido Democrata.

O curioso é a contribuição recente de alguns ex-membros do establishment. Um paper recente do Blackrock Research Institute de autoria de Stanley Fischer (ex-Fed) e Philipp Hildebrand (Swiss National Bank) é um bom exemplo. Para quem se acostumou a ouvir banqueiros centrais exultando as virtudes da independência, ler que agora alguns deles defendem a ideia de “going direct” — os BCs transferirem recursos diretamente para agentes públicos e privados — é chocante.

A pergunta que não quer calar: “quando os políticos descobrirem que os bancos centrais estão à sua disposição para financiar seus gastos, será possível voltar atrás?”

Resumindo, se na época daquela conversa alguém afirmasse que em pouco tempo 20% dos títulos soberanos de países desenvolvidos estariam negociando com juros nominais negativos, que bancos centrais estariam carregando em seus balanços dívidas privadas e ações e que banqueiros centrais de reputação ilibada estariam discutindo abertamente financiamento monetário de déficits, boa parte de nós questionaria a sanidade da análise (e/ou do analista).

A Lição

Quem estuda gestão de portfolio sabe que o ponto central de nossa profissão é o da tomada de decisão em condições de incerteza. Nossa missão é sempre expandir os limites do nosso conhecimento, melhorar, crescer, evoluir. Fazemos escolhas com base em um conhecimento que muda a cada segundo. No momento que deixamos de aprender, nos tornamos obsoletos.

Por outro lado, não admitir que existe um limite, ou pior ainda, desconhecer que o mesmo existe, já custou a carreira de muita gente. O Buffett fala muito do conceito de círculo de competência. Da importância de ter muito claro onde estão as fronteiras do nosso conhecimento. O problema é que conhecimento não é uma variável binária; ou temos ou não temos. No mercado financeiro, a exemplo da frase do Mark Twain, é bem mais fácil perder dinheiro com aquilo que a gente acha que sabe, com o conhecimento superficial ou “pseudoconhecimento”.

Nunca é demais lembrar: informação e conhecimento não são a mesma coisa. Essa foi uma das mudanças claras ao longo dos últimos 20 anos. Dada a evolução da tecnologia e disseminação das plataformas de dados, os retornos simplesmente da informação tendem a zero. Já a perspectiva de retorno do conhecimento, definido como raciocínio e tomada de decisão aplicados à informação, ainda permanece relevante.

Para um gestor, reconhecer a diferença entre risco e incerteza é mais do que apenas semântica. 

Caminhamos todo dia nessa linha tênue entre o que sabemos e desconhecemos, entre ter uma convicção, mas estar aberto a todo momento à possibilidade de estar errado. Entreter duas possibilidades mutuamente excludentes de investimento na cabeça ao mesmo tempo, sem ser paralisado pelas mesmas, é um dos motivos pelos quais nossa profissão é tão fascinante. Tem uma parte ciência e uma parte arte.

Aquele “eu não sei” teve mais influência sobre minha carreira que muitos tratados de investimento. Mas, tenho que reconhecer, pode não ser suficiente para todos. Do outro lado tem sempre a “put worst of ouro, yen e treasury com um knockout no dólar australiano swapado em renmimbi pra neutralizar o risco de commodity”. Talvez faça sentido para alguns.

Artur Wichmann é gestor da estratégia de ações globais da Verde Asset Management.