Um dos maiores investidores do mundo, George Soros passou as últimas três décadas colecionando inimigos na política: de Putin a Orbán, de Trump a Bolsonaro. (Quem acertar o denominador comum entre eles ganha o direito ao voto impresso.)
Em “Em Defesa da Sociedade Aberta”, seu livro de 2019 que a Intrínseca (finalmente) está lançando no Brasil, Soros adiciona duas empresas à sua lista: Google e Facebook, além das outras megacorporações de tecnologia americanas e chinesas.
No livro, Soros argumenta que essas empresas não pensarão duas vezes antes de se associar a governos ditatoriais para criar “uma rede de controle totalitário de um modo que nem George Orwell teria imaginado”.
E, num tema talvez mais caro à Faria Lima que a própria liberdade, o homem que quebrou o Banco da Inglaterra diz que a regulação e a taxação vão minar a lucratividade de Google e Facebook muito em breve.
“É apenas questão de tempo para a dominação global dos monopólios de tecnologia americanos ser quebrada. A regulação e a taxação serão sua ruína, e a comissária europeia para a concorrência, Margrethe Vestager, será sua nêmesis.”
Nascido em Budapeste, Soros sobreviveu à ocupação nazista durante a Segunda Guerra Mundial e fugiu da Hungria — já dominada pelos comunistas — em 1947. Em 1992, ganhou fama mundial com sua célebre aposta na desvalorização da libra esterlina, que lhe rendeu US$ 1 bilhão (costumava ser muito dinheiro na época).
Seu trabalho filantrópico começoau ainda em 1979: Soros dava bolsas de estudo para alunos negros numa África do Sul ainda envenenada pelo apartheid, bem como para dissidentes de regimes comunistas da Europa do Leste estudarem nos EUA e Inglaterra.
“A África do Sul era uma sociedade fechada: ela tinha todas as instituições de um país de primeiro mundo, mas elas eram proibidas para a maioria da população por motivos raciais. Onde eu poderia encontrar uma oportunidade melhor para abrir uma sociedade fechada?” Soros disse certa vez.
Nos anos 80, Soros também tentou abrir uma fenda no regime comunista de seu país natal. Para expandir o acesso à informação numa época em que a ditadura controlava tudo, chegou a distribuir máquinas de Xerox para grupos dissidentes do regime húngaro.
Soros também tentou “arejar” sociedades na Rússia, Polônia, Ucrânia e diversos países sob domínio comunista. O fato de hoje ele ser odiado por apoiadores da “nova direita mundial” — que se proclamam grandes anticomunistas — é a maior piada pronta deste mundo polarizado, e prova (mais uma vez) que os extremos não apenas se parecem como vivem em simbiose.
Hoje, Soros faz seu trabalho por meio da Open Society Foundations, uma rede internacional de filantropia que apoia grupos da sociedade civil que lutam por justiça, educação, direitos humanos e a democracia liberal. (O termo ‘sociedade aberta’, é claro, foi cunhado pelo filósofo Karl Popper, de cuja obra Soros talvez seja o maior defensor vivo.)
“Em defesa da sociedade aberta” (192 páginas, R$ 49,90) é uma compilação de seis conferências e textos produzidos por ele entre 2014 e 2019, incluindo dois discursos no Fórum Econômico Mundial sobre os perigos sem precedentes enfrentados pelas sociedades abertas.
O primeiro discurso trata das ameaças representadas pelas plataformas de mídias digitais, e o segundo alerta para o risco ainda maior representado pelos instrumentos de controle que, graças à inteligência artificial, podem cair nas mãos de regimes repressivos, em especial da China e da Rússia.
Há ainda ensaios sobre filantropia política; a história das instituições fundadas por Soros, a Open Society Foundation e a Universidade Centro-Europeia (CEU); a teoria de Soros sobre a ascensão e a queda dos mercados financeiros e suas implicações políticas; e as ameaças que a União Europeia enfrenta hoje.
Abaixo, um trecho do livro:
Conforme Facebook e Google se transformaram em monopólios cada vez mais poderosos, tornaram-se obstáculos à inovação.
Empresas lucram explorando seu ambiente. Mineradoras e petrolíferas exploram o ambiente físico; empresas de mídias sociais exploram o ambiente social. Facebook e Google controlam efetivamente mais da metade de toda a receita de publicidade da internet.
A lucratividade excepcional dessas empresas se dá em grande parte em função de evitarem ser responsabilizadas — e evitarem pagar — pelo conteúdo de suas plataformas.
Elas alegam que estão meramente distribuindo informação. Mas o fato de praticamente monopolizarem sua distribuição faz delas um serviço público e portanto sujeitas a regulamentações mais severas, voltadas a preservar a competição, inovação e o acesso universal.
Pouco a pouco, um novo modelo de negócios está emergindo, baseado não apenas em publicidade. Essas empresas exploram os dados que controlam. Isso aumenta ainda mais sua lucratividade.
Existe uma perspectiva ainda mais alarmante no horizonte. Poderia ocorrer uma aliança entre estados autoritários e esses imensos monopólios de tecnologia ricos em dados, que fundiriam os sistemas incipientes de vigilância corporativa a um já desenvolvido sistema de vigilância patrocinado pelo estado.
Isso pode perfeitamente resultar numa rede de controle totalitário de um modo que nem George Orwell teria imaginado. Os países em que tais alianças profanas tendem a acontecer primeiro são Rússia e China.
As empresas de tecnologia chinesas em particular desfrutam do pleno apoio e proteção do regime de Xi Jinping. O governo da China é forte o bastante para proteger seus campeões nacionais, pelo menos dentro de suas fronteiras.
Os monopólios de tecnologia radicados nos Estados Unidos estão tentados a fazer concessões para ganhar entrada nesses vastos mercados em rápido crescimento. Os líderes ditatoriais nesses países podem de muito bom grado colaborar com eles, pois esperam aperfeiçoar seus métodos de controle sobre a própria população e expandir seu poder e influência nos Estados Unidos e no resto do mundo.
Os donos das gigantes da internet se consideram os senhores do universo, mas na verdade são escravos preservando sua posição dominante. Tais empresas são grandes o bastante para engolir startups que um dia possam competir com elas. Estão preparadas para dominar as novas áreas de crescimento abertas pela inteligência artificial, como os carros autônomos.
Os monopólios da internet não têm a vontade nem a inclinação de proteger a sociedade contra os efeitos de suas ações. Isso faz deles uma ameaça e cabe às autoridades reguladoras proteger a sociedade contra eles.
Nos Estados Unidos, os legisladores não possuem força suficiente para se opor à influência política dos monopólios de internet. A União Europeia está em melhor situação, porque não tem gigantes de plataforma.
É apenas questão de tempo para a dominação global dos monopólios de tecnologia ser quebrada. A regulação e a taxação serão sua ruína e a comissária europeia para a concorrência, Margrethe Vestager, será sua nêmesis.
A União Europeia e os Estados Unidos usam diferentes definições para o poder de monopólio. A lei americana foca principalmente em monopólios criados por aquisições, enquanto a lei europeia proíbe o abuso do poder de monopólio a despeito de como seja conquistado. A Europa possui leis de proteção a privacidade e dados muito mais forte do que os americanos.
Além do mais, a lei americana adota uma estranha doutrina proposta inicialmente pelo juiz Robert Bork, da Suprema Corte: ela mede o dano como um aumento no preço pago por clientes para os serviços prestados — e isso é quase impossível de provar quando a maioria dos serviços são fornecidos de graça. Desse modo, os valiosos dados que as empresas de plataforma coletam de seus usuários não são levados em consideração.
A comissária Vestager é a campeã da abordagem europeia. Levou sete anos para a UE reunir evidências contra a Google, mas como resultado de seu sucesso, o processo caminha bem acelerado. Graças ao seu proselitismo, a abordagem europeia começou a afetar as atitudes também nos Estados Unidos.
Só agora começamos a nos dar conta da variedade de problemas causados por essas empresas.