Há anos sabemos que devemos reduzir ou mesmo deixar de comer carne bovina, seja devido ao desmatamento que sua produção causa no Brasil, seja pela emissão de gás metano pelos animais. 

Agora, depois de assistir ao filme Seaspiracy, disponível na Netflix, talvez você fique sem apetite também para comer peixe.

Documentário-denúncia, gênero que ficou famoso com Michael Moore e aqui se apresenta com ainda menos pudor em ser opinativo e, por vezes, manipulador, o filme avança por um manancial de fontes, que infelizmente não temos tempo de ler na tela. Ao fim, o diretor Ali Tabrizi faz um competente relato sobre a crise dos mares pelo mundo. 

Da poluição nas águas, passando pelas marés de plástico, e pela influência dos oceanos sobre a crise climática, o filme é um importante alerta sobre a drástica diminuição da vida marinha pelo mundo. 

Os responsáveis: a má regulação global sobre uso de oceanos e o comportamento predatório, e muitas vezes criminoso, das grandes empresas de pesca.  

O filme tem um tom alarmista, ora histriônico, mas aponta na direção certa. Quem já olhou debaixo d’água sabe: os mares estão cada vez mais desertos. O que o filme nos mostra é como isso coloca em risco a vida também em terra firme. O lixo e a pesca precisam ser melhor regulados. 

O documentário explica muito bem a famosa matança anual de golfinhos e baleias no sul do Japão — segundo o diretor, parte de uma estratégia para aumentar a quantidade de atum a ser pescado e servido como sushi.

O próximo alvo da metralhadora giratória — e com ótima mira — é a incompetência (e possível conluio) de organizações e órgãos internacionais. O filme surpreende trazendo à tona a gravidade dos restos de redes de pesca, feitas de plástico, na poluição dos oceanos.

Você ficará chocado ao descobrir que 47% do plástico encontrado no Canal da Mancha, entre a Europa e a Inglaterra, é composto por pedaços de rede de pesca. O diretor e sua operadora de câmera interpelam ONGs de proteção marinha sobre este fato, talvez o segmento mais interessante do filme. Ao acusar os selos de pesca sustentável de corrupção com a indústria pesqueira, o filme chega a seu argumento mais potente: não existe pesca industrial sustentável. 

Tabrizi — ora entrevistando com destreza, ora fazendo caras e bocas para a câmera — nos revela a ineficiência da indústria pesqueira global, em que 40% do que é pescado não interessa comercialmente e acaba sendo descartado (a maioria já sem vida). 

Este “descarte” é o grande desafio da pesca industrial, e, se você comprar o argumento do filme, faz de quem come peixe cúmplice de uma matança boçal. As imagens de drone mostrando a atividade nos convés de grandes barcos pesqueiros são chocantes. 

Em 2018, o mesmo diretor fez um filme sobre veganismo, e este de agora foi produzido pelo mesmo produtor e pela mesma equipe que realizou outro sucesso de mal-estar da Netflix, o documentário Cowspiracy, um libelo contra o consumo de carne. 

Segundo o campeão da Copa do Mundo de pesca submarina e capitão do time dos Estados Unidos, Francisco Loffredi, a pesca esportiva pode ser uma arma poderosa contra a pesca ilegal. 

Segundo ele, o melhor exemplo é a Flórida. Apesar da densidade habitacional, o mar de Miami é um dos lugares do mundo onde mais se encontra lagosta, resultado de boas políticas públicas regulando e incentivando a pesca esportiva. 

O filme também revela a íntima relação entre a vida na terra e nos mares. A crise climática, que tem aumentado a temperatura e o nível de acidez dos oceanos, está levando à diminuição das populações de peixes ao destruir corais que servem de comida para os peixinhos que alimentam os peixões.

O filme não entra — não por falta de más notícias — em território brasileiro, onde a devastação da Mata Atlântica na região costeira é importante explicação para a redução das quantidades e espécies marinhas. Aqui, na chamada Zona Intertropical, 90% da atividade pesqueira acontece na faixa costeira — e não em alto mar. E 66% desta pesca depende da existência de mangue. Em Angra dos Reis, por exemplo, nos últimos quarenta anos, 60% deste bioma foi devastado.

A má regulação por entes nacionais e subnacionais, e a falta de bons acordos internacionais também estão por trás da redução das populações de peixes. Gráfico após gráfico, o filme revela o tombo vertiginoso nas quantidades de peixes nos mares nos últimos 40 anos. Este assunto não está endereçado como um dos grandes desafios globais. E deveria. 

Aqui no Brasil, se formos salvar o mundo — como profetiza Jorge Mautner — entidades como o Instituto Humanize e o CEBRI (Centro Brasileiro de Relações Internacionais) deveriam se engajar mais com o assunto, e ajudar o Brasil a ser algo mais do que um diminuto ator global.

Tem coisas para as quais governos nacionais não bastam, como a crise climática e as possíveis novas pandemias zoonóticas.  Temas assim não se resolvem individualmente por países, e nem mesmo por blocos de nações. A preservação da vida marinha também é um destes casos. 

Resta torcer para que Seaspiracy influencie o debate global. Antes que os peixes acabem — ou coisa pior.

 

Guilherme Coelho é documentarista e fundador da República.org

 

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