Depois de admitir a impotência perante as drogas como primeiro passo e, por último, aceitar um despertar espiritual, resta ao viciado transmitir a mensagem da cura para todos que se encontram numa situação de desespero perante o vício. 
 
Esses ensinamentos fazem parte do programa ‘12 Passos’ dos Alcoólicos Anônimos, e não seria um spoiler significativo contar que “Rocketman” começa e termina assim: em uma clínica de reabilitação.
 
Trata-se de uma história com 90% de talento bruto, 10% de sorte, e imensurável superação.
No filme, assim como na vida real, Reginald Kenneth Dwight, um talentoso pianista britânico com uma voz privilegiada, se reinventa com o nome de Elton John — mas nem em seu maior delírio imaginaria que um dia seria condecorado pela Rainha por seu trabalho na luta contra a Aids e receberia o título de Sir. 
 
“Rocketman”, que conta esta trajetória numa delirante cinebiografia musical, é parte de uma onda de recentes estreias pop-rock musicais que conquistaram a crítica, o público e, surpreendentemente, prêmios da Academia de Cinema, que costuma manter um histórico conservador na entrega dos seus oscars. 
 
“Nasce Uma Estrela” (a refilmagem do clássico com Lady Gaga) e “Bohemian Rhapsody” (a cinebiografia sobre Freddie Mercury) despertaram um público que não se limita às plateias dos espetáculos musicais e, em sua grande maioria, não tem idade para saber quem foi Judy Garland (mãe de Liza Minnelli e a primeira “estrela” do filme de 1954) ou assistiu ao mitológico show do Queen no Rock in Rio em 1985 (creditado de maneira equivocada em Bohemian Rhapsody, mas isso é outra história). 
 
É impossível falar de Rocketman sem compará-lo com Bohemian Rhapsody, já que ambos foram dirigidos por Dexter Fletcher, mas o filme sobre Elton John leva uma vantagem involuntária: o objeto de seu retrato está mais vivo do que nunca e, junto com seu marido David Furnish, assumiu a produção do filme.
 
Elton, o produtor, não poupa o público das fraquezas, frustrações e depressão (“Sorry Seems to Be the Hardest Word”) de Elton, o intérprete, e não tem problema algum em expor sua sexualidade (“Honky Cat”), seja nas cenas para lá de ousadas com o ‘sex symbol’ Richard Madden (Robb – Game of Thrones – Stark) ou ao contar seu casamento equivocado com uma mulher, quando o artista achava que isso resolveria sua carência emocional (“Don’t Let the Sun Go Down on Me”).
Embora hoje não seja nada chocante saber que alguém é gay, as relações homossexuais eram um crime no Reino Unido até 1967, e a única maneira de exigir tolerância era através da arte e pelo confronto das causas comportamentais.  Não por acaso o movimento punk nasceu na Inglaterra, dentro desse contexto.

No filme, acompanhamos Sir Elton John desde sua infância de menino prodígio, passando pelos anos 60 como pianista coadjuvante de uma banda de black music; o sucesso dos anos 70, quando extrapola a sua sexualidade glamourosa em dezenas de hits assobiáveis embalados com uma performance visual que era pura provocação, literalmente, da cabeça aos pés; até sua depressão e renascimento nos anos 80.

Por falar em tolerância, esta não é uma qualidade atribuível ao pai de Elton. Seu desprezo pelo filho parece uma crueldade digna de personagens de Charles Dickens, e só sabemos o quanto essa não-relação o afetou quando descobrimos em algumas músicas o conflito entre pai e filho (“I Want Love”). 

 
A obsessão de Elton em receber a aprovação do pai, mesmo depois de haver se tornado um astro, transforma o filme numa espécie de musical freudiano, mas felizmente a música transcende os conflitos existenciais — ainda que metade dos créditos por isso se deva a Bernie Taupin (interpretado com carisma e competência por Jamie Bell, o eterno garoto Billy Eliot), a alma gêmea do cantor e a única pessoa que entendeu, desde cedo, toda a sua potência como artista.  

Por último, mas não menos importante, “Rocketman” não seria o mesmo sem a atuação arrebatadora de Taron Egerton.  Você conhece esse rostinho de “Kingsman: O Círculo Dourado”, mas agora o ex-adolescente encontrou um papel adulto e maduro.

 
Se o trunfo de Bohemian Rhapsody foi Rami Malek, pelo meticuloso trabalho de composição para viver Freddie Mercury, deve-se observar que Malek foi dublado nos números musicais. 
 
Já Egerton não apenas encarna o cantor como canta em todas as cenas, tendo recebido a suprema aprovação do próprio Elton. Felizmente, agora Egerton poderá ser perdoado por ter assumido o papel de Robin Hood (2018) numa versão cinematográfica que não convenceu nem o adolescente mais desmiolado. 
 
Com Rocketman, Egerton abre caminho para as premiações de melhores do ano e cacifa seu nome para outros grandes papéis. Já Elton John não precisa mais se preocupar com coisas do tipo, “I’m not the man they think I am at home”.  Ele sempre será nosso Rocketman.
 
 
Caetano Vilela é encenador, iluminador e diretor de óperas e musicais com montagens no Brasil e no exterior.