Não é preciso ser um gênio para ganhar um prêmio Nobel, dizia o físico americano Richard Feynman, um dos cientistas mais celebrados da segunda metade do século XX.
O exemplo era ele próprio, que se definia como alguém que se interessava por diversos temas e teve dedicação suficiente para dominar a matemática e as teorias relacionadas à física quântica. Seu QI, afirmava, não era muito acima da média: 125. Alto, mas “apenas respeitável”, e suficiente para os estudos que lhe valeram a honraria em 1965.
Por mais que a afirmação faça sentido, não é essa a impressão que fica quando lemos seu mais famoso livro autobiográfico, Só Pode Ser Brincadeira, Sr. Feynman!, uma obra de 1985 relançada agora no Brasil – provavelmente por causa da enfática recomendação de Bill Gates. (Para comprar, clique aqui.)
É certo que, nas situações retratadas no livro, Feynman quase nunca é a pessoa mais inteligente da sala. Também, pudera.
Para ficar num único exemplo, em sua primeira apresentação pública de um trabalho, estavam na sala o americano Henry Norris Russell, um dos maiores astrônomos do século passado; o austríaco Wolfgang Pauli, um dos pioneiros da física quântica e Nobel da Física; o húngaro-americano John Von Neumann, o matemático que criou modelos para a física quântica e desenvolveu a teoria dos jogos; e… Albert Einstein, que era Albert Einstein.
Ainda assim, as diversas aventuras que Feynman conta, com bom humor e picardia, mostram que ele desde cedo se revelou um indivíduo, digamos, peculiar.
Aos 11 anos já tinha um laboratório em casa, montado com um caixote de madeira. Fazia experiências diversas e chegou a incendiar as cortinas (conseguiu apagar o fogo antes de tomar uma bronca da mãe).
Ainda criança, durante a Grande Depressão, nos anos 1930, dedicou-se a consertar aparelhos de rádio – segundo ele, um ofício tornado mais simples porque naquele tempo todos os transistores ficavam à vista e era mais fácil identificar o problema.
Justamente ao tentar mostrar que não era nenhum gênio, Feynman acaba nos convencendo do contrário. Como quando diz que, no ensino médio, um colega o procurava para ajudá-lo com problemas de geometria de um curso avançado de matemática.
“Eu não sossegava enquanto não resolvia a porcaria do troço, o que me exigia quinze ou vinte minutos. Mas, durante o dia, outros caras me procuravam com o mesmo problema, e eu os resolvia num piscar de olhos. Quero dizer, da primeira vez eu ficava uns vinte minutos resolvendo o problema, mas para cinco outros caras eu era um supergênio.”
Mulheres e bombas
Mais interessante do que os feitos científicos de Feynman é a forma com que ele os desenvolveu. Nisto o livro se torna valioso: mesmo não entendendo nada de física quântica, é difícil não sair dessa leitura com umas três ou quatro lições para a vida.
Só Pode Ser Brincadeira não chega a ser uma biografia, mas sua coleção de “causos” dá uma boa ideia de como funcionava a mente de Feynman. E durante esse trajeto surge um punhado de conselhos que podem ser descritos como o melhor estilo de autoajuda: aquele que faz o leitor refletir.
A “fórmula” de Feynman parece batida – uma mistura de curiosidade incessante e persistência atroz – mas os causos tiram os conselhos do terreno dos clichês.
Por exemplo: durante um bom período, Feynman se considerou estagnado. Depois de um início de carreira brilhante, não parecia avançar em teoria nenhuma.
Parecia sofrer do que se costuma chamar de síndrome do impostor, a noção de que você não merece o reconhecimento que está tendo. Então caiu em si. Convenceu-se de que, se alguém lhe dá mais crédito do que você acha que merece, o erro é dele, não seu.
A partir daí, sentiu-se livre para brincar com a física, dedicar-se apenas ao que lhe interessava e lhe parecia divertido. Incluindo analisar o movimento de um prato atirado por um sujeito no restaurante.
“Por que você gasta tempo com as fórmulas de um prato?”, perguntou-lhe um amigo. “Porque é divertido”, respondeu.
A brincadeira rendeu frutos. “Os diagramas e todas aquelas coisas pelas quais ganhei o Nobel vieram dessa perda de tempo com o prato em precessão,” diz.
Feynman parecia ter uma outra característica: uma grande energia para a vida.
Que, diga-se de passagem, não se limitava à ciência. Mulherengo assumido, ele cita no livro casos com mulheres casadas, noites passadas em boates de strip tease, a fórmula para saber se uma mulher iria dormir com ele… e fala de seus três casamentos.
Essa energia pode tê-lo armado com uma ferramenta poderosa, o autodidatismo. Por vê-lo fazer muita bagunça na sala de aula, um professor identificou que ele sofria de tédio e lhe deu um livro de matemática avançada. Só poderia voltar a conversar depois de lê-lo. Como o método daquele livro era diferente do ensinado nas universidades, Feynman acabou ficando craque em resolver problemas de forma pouco ortodoxa.
De sua grande inquietude também vem sua mais famosa qualidade, a que dá título ao livro: Feynman era um grande pregador de peças.
Entre os casos mais saborosos está o modo como ele desenvolveu uma técnica para abrir cofres, tão bem sucedida que várias vezes teve nas mãos documentos ultrassecretos sobre o desenvolvimento da bomba atômica, no tempo em que trabalhou sob a supervisão de Julius Robert Oppenheimer.
Feynman está, aliás, bem retratado no filme Oppenheimer. Ainda bem jovem, ele foi um dos responsáveis pelos cálculos da energia que uma bomba soltaria.
No livro, o físico fala sobre o dilema ético de trabalhar num artefato tão destruidor. Quando foi convidado a fazer parte da equipe, Feynman recusou imediatamente.
“E voltei a trabalhar em minha tese… durante três minutos. Em seguida comecei a andar de lá para cá pensando no tópico. Os alemães tinham Hitler, e a possibilidade de que criassem uma bomba atômica era óbvia; a de que a criassem antes de nós era assustadora. Então decidi ir à reunião,” escreve.
A ligação com o Brasil
O prêmio Nobel, diz Feynman, foi mais chateação do que honraria. Segundo ele, a maior vantagem de ter sido premiado foi que o governo brasileiro o convidou para assistir aos desfiles das escolas de samba no Carnaval carioca.
O Brasil já era uma velha paixão. A convite do físico brasileiro Jaime Tiomno, que em 1948 foi seu colega em Princeton, Feynman obteve uma bolsa e passou um ano no País.
Apaixonado por bongô (ele aparece tocando o instrumento em Oppenheimer), aqui ele acabou aprendendo a tocar frigideira. Chegou a desfilar num bloco na zona Sul do Rio.
Suas memórias do Brasil são quase sempre elogiosas – a não ser quando fala da ciência. Segundo ele, os alunos e professores não aprendiam, simplesmente decoravam as fórmulas, sem fazer as imprescindíveis ligações com as coisas práticas.
No centro da fórmula de Feynman está esse espírito pragmático, aliado a uma saudável desconfiança de regras e um destemor de figuras de autoridade.
Um caso que ilustra isso é a visita de Niels Bohr, pioneiro da física quântica, a Los Alamos, a base para a construção da bomba atômica. “Mesmo para os chefões, Bohr era como um deus,” diz Feynman. Mas antes de conversar com qualquer um, Bohr quis ter uma reunião com ele.
“O filho me contou depois o que tinha acontecido. Da vez anterior em que tinham estado lá, Bohr havia dito a ele: ‘Lembra o nome daquele camaradinha que está ali no fundo? É o único que não tem medo de mim e vai me dizer quando eu tiver uma ideia maluca. Então, da próxima vez que formos lá discutir ideias, não vamos conseguir nada com esses caras que a tudo dizem ‘sim, sim, dr. Bohr’. Procure aquele cara e vamos falar com ele primeiro’.”