A PEC Segurança, apresentada pelo Governo em abril, teve o mérito de abrir o debate sobre a necessidade de reformar o arcabouço constitucional para o enfrentamento do crime – mas é uma proposta “cosmética” e precisa ser endurecida.

A partir dessa avaliação, o deputado Mendonça Filho (União-PE), o relator da Proposta de Emenda Constitucional, disse ao Brazil Journal que pretende “transformar essa iniciativa em algo muito mais ousado, muito mais efetivo, sintonizado com as práticas internacionais.”

Mendonça Filho adiantou alguns dos pontos que serão incluídos na PEC, entre eles a proposta de acabar com a possibilidade de progressão penal para alguns tipos de crime.

“Temos um caldo de cultura no Brasil muito frouxo, em relação a quem comete crime,” disse. “Se não há o cumprimento da lei de forma mais efetiva, há um incentivo à criminalidade.”

O prazo estabelecido pelo presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB) para a entrega do parecer substitutivo é 4 de dezembro. A intenção é votar a proposta antes do início do recesso de fim de ano.

Na conversa abaixo, Mendonça Filho explicou ainda como a PEC, de alcance macro, vai se relacionar com o PL Antifacção, que acaba de ser aprovado na Câmara e seguiu para o Senado. 

Por que o senhor considera a PEC da Segurança, encaminhada pelo Governo?

O Governo demorou muito em reagir e tomar alguma iniciativa. Em seu terceiro ano, em abril passado, enviou essa Proposta de Emenda à Constituição que, na prática, constitucionaliza uma lei federal que já existe, que é a Lei do SUSP, Sistema Único de Segurança.

É algo meio estranho, mas no Brasil tem dessas coisas. Para empoderar a lei federal que já existe você constitucionaliza o tema. Não deixa de ser um reconhecimento da ineficácia do Estado.

Então, entendo como muito mais um gesto do Governo do que propriamente uma medida efetiva ou eficaz de enfrentamento do desafio da área de segurança pública. Considero a proposta cosmética.

O único mérito foi ter aberto o debate. 

O projeto, da maneira que saiu do Governo, não contribui para aprimorar a coordenação das forças federais de segurança com as estaduais?

Do ponto de vista de coordenação, o efeito do sistema único já está previsto na lei federal. Se ela é constitucionalizada, a única coisa que você faz é reconhecer o não funcionamento da lei federal e elevar o patamar de legislação constitucional.

Agora, ela também comete um erro básico: vai na direção da centralização de uma política pública que é historicamente e mundialmente descentralizada.

Políticas de segurança pública em países continentais e federações são políticas descentralizadas. Austrália, Canadá, EUA, Alemanha… Em todos esses países, toda política de segurança pública é municipal ou estadual, com atribuições federais muito específicas, como terrorismo e tráfico internacional.

No Brasil, 80% do investimento na área de segurança vem dos estados. A União responde por entre 10 e 12 pontos percentuais, e o restante é dos municípios.

Em um país de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, 27 unidades da federação e 5.500 municípios, jamais poderia haver uma centralização dessa política pública em Brasília. O que não impede que possa haver mais integração e cooperação entre os entes federados, sobretudo em áreas como inteligência e nas FICOs, que são Forças Integradas de Combate, como foi na Operação Carbono Oculto, envolvendo diversos órgãos. Estou trazendo isso para o meu relatório.

Então, para mim, a proposta do Governo traz um mérito, que foi abrir o debate. Mas é realmente muito superficial, e nós vamos transformar essa iniciativa em algo muito mais ousado, muito mais efetivo, sintonizado com as práticas internacionais e buscando aquilo que é possível em termos de cooperação e integração.

O relatório vai propor endurecimento de penas e legislações específicas para o combate do crime organizado?

A PEC trata de matérias macro, do arcabouço constitucional.

No arcabouço infraconstitucional, tivemos recentemente o PL Antifacção, que foi relatado pelo secretário de São Paulo, Guilherme Derrite. O texto fixou o novo marco legal a respeito das organizações criminosas de grande lesividade, de grande domínio territorial e de grande impacto

Toda a lógica da proposta relatada pelo secretário de Derrite se baseia no domínio territorial, na ocupação territorial ou de atividades econômicas importantes em segmentos como, por exemplo, combustíveis e uso de fintechs para lavar dinheiro. Ou como os grupos criminosos poderosíssimos que penetraram nas comunidades mais pobres do Brasil, dominando internet, gás de cozinha, serviços de transporte público.

Essa legislação vai se relacionar com as mudanças constitucionais que pretendo promover na PEC. Não teremos fixação de pena, mas de tratamento mais firme das organizações criminosas.

No Brasil existe a cultura de flexibilização de cumprimento de pena, algo nefasto, incentivando a reiteração da prática criminosa – o que o regime de progressão termina incentivando.

Em boa parte das penas no Brasil, com o cumprimento de 25% do tempo, os criminosos estão em liberdade. Em uma condenação de 16 anos, em 5 anos o criminoso está na rua.

O bandido acha que vale a pena, na chamada economia do crime, continuar praticando os delitos. O crime compensa, como se diz no popular.

Derrite elevou para 85%. No meu relatório, pretendo possibilitar até a progressão zero para crimes que sejam classificados como extremamente lesivos e comandados por facções perigosíssimas, como essas que tomam conta de boa parte de territórios em cidades do Rio de Janeiro, da Bahia e do Ceará, para ficar nos exemplos mais notórios.

Isso vai estar presente no nosso relatório, ou seja, possibilidade de progressão zero.

No passado, houve uma legislação que fixou progressão zero para certos crimes hediondos, mas o Supremo julgou inconstitucional. Se julgou inconstitucional, vamos tornar constitucional a possibilidade de você ter progressão zero.

Assim poderemos enquadrar esses delitos de maior gravidade de grupos extremamente perigosos como punição máxima, de até 40 anos, e com progressão zero – ou seja, sem benefício desse regime de progressão.

O senhor citou a reincidência. As audiências de custódia também estarão no escopo dessa PEC? 

Essa é uma legislação [sancionada recentemente] que foi liderada pelo senador Sergio Moro, que torna a audiência de custódia para a reiteração delitiva com graus de rigidez ainda mais significativos, já que, para o Judiciário brasileiro e para o próprio Supremo, seria um direito básico ao cidadão a audiência de custódia.

Pela sua experiência na vida pública, até como governador de Pernambuco, o que explica a pouca efetividade no combate ao crime?

O sistema de persecução penal no Brasil e de segurança pública é muito caótico. Tem muito retrabalho, muita divisão. A polícia militar só faz policiamento ostensivo e repressivo, as polícias civis são as polícias judiciárias dos Estados.

Não há o chamado ciclo completo, no universo das polícias, o que torna o trabalho muito pouco cooperativo.

No caso americano, quando uma polícia apura um caso, muitas vezes já é acompanhada pela Promotoria. A denúncia é imediata. Na realidade brasileira, o inquérito policial frequentemente é refeito durante o processo judicial.

Uma das inovações que eu quero introduzir na minha proposta é que as polícias militares possam cuidar de inquéritos policiais dos crimes de baixo impacto ofensivo, o TCO, Termo Circunstancial de Ocorrência.

Hoje, quando há o flagrante de um roubo de celular, por exemplo, o policial militar vai ter que sair de uma área que ela está policiando, acompanhar a vítima e o bandido até uma delegacia, lavrar um auto, abrir um inquérito, ouvir testemunhas etc. 

A delegacia acaba tomada por crimes de baixo impacto ofensivo, em vez de estar cuidando de crimes muito mais complexos em termos de investigação. Enquanto isso, o policial sai da sua área de policiamento e fica quatro ou cinco horas na delegacia.

Muitos cidadãos que são atacados numa situação como essa, vítimas de crimes de menor impacto, simplesmente preferem nem fazer queixa. Acham perda de tempo.

Vamos resolver isso dando à Polícia Militar o poder de lavrar o auto e remeter diretamente para o Judiciário. O mesmo vai ocorrer com a Polícia Rodoviária Federal. Hoje, se o policial pega um motorista embriagado, precisa levar a pessoa para uma delegacia, muitas vezes, a 80 km ou 100 km de distância do local, deixar a rodovia sem policiamento, sem patrulhamento.

Se for motivo de prisão em flagrante, ele prende e entrega à Polícia Judiciária para cuidar dos trâmites. Precisamos simplificar e tornar mais efetivo o trabalho daqueles que estão atuando na ponta como policiais.

É preciso falar que temos um caldo de cultura no Brasil muito frouxo, em relação a quem comete crime. Se não há o cumprimento da lei de forma mais efetiva, há um incentivo para a criminalidade.

Falta repressão?

Não sou daqueles que entendem que o crime é apenas algo que você vai resolver pela repressão. A repressão é necessária, mas devemos também investir em políticas públicas em regiões hoje dominadas por facções.

Quando fui governador de Pernambuco, tínhamos ações de combate à criminalidade que casavam as duas ações: o lado mais duro no combate ao crime com políticas públicas dirigidas principalmente aos jovens em vulnerabilidade social, com acesso a lazer, cultura, esportes e principalmente a educação em tempo integral.

O Instituto Sonho Grande, que é um instituto que foi fundado por Marcel Telles e foi nosso parceiro no Ministério de Educação na expansão do ensino em tempo integral, tem um estudo que mostra a redução de taxa de homicídio de jovens em situação de vulnerabilidade de até 50%, em razão da adoção de educação em tempo integral. Um jovem que tem um ambiente escolar em tempo integral é um jovem protegido.