Segurança jurídica não parece ser mesmo uma vocação nacional.
Em seu último dia como presidente do Senado, 31 de janeiro, Rodrigo Pacheco protocolou o Projeto de Lei da reforma do Código Civil – uma ‘reforma’ tão ampla que foi recebida no meio jurídico como a elaboração de um novo Código.
Sob o pretexto de atualizar o atual Código, de 2003, “em consonância com as questões contemporâneas,” Pacheco já havia nomeado uma comissão de especialistas em agosto de 2023.
Oito meses depois, o texto estava pronto – propondo a revogação de 897 dos artigos do Código em vigor e a inclusão de 300 novos.
A comissão foi presidida por Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça – postulante a uma das vagas que serão abertas em breve no Supremo Tribunal Federal.
Um dos relatores e principal porta-voz da reforma foi Flávio Tartuce, professor de Direito e amigo de longa data de Pacheco. O senador, que fez carreira como advogado antes de ingressar na política, e Tartuce se conhecem desde a infância em Passos, no interior de Minas.
Um dos principais pilares do Direito, o Código Civil é o conjunto de leis que regulamenta as relações jurídicas entre as pessoas e as empresas – com regras que vão desde a sucessão patrimonial a obrigações contratuais.
A falta de um debate amplo sobre as alterações levou a uma torrente de críticas ao projeto. O que mais tem causado preocupação entre os juristas são as amplas consequências para o Direito Privado – em particular, seus efeitos sobre a economia.
“Foi um processo todo corrido, atabalhoado, sem reflexão,” Cristiano Zanetti, professor de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP, disse nesta entrevista ao Brazil Journal. “O que sobrevém disso é um projeto caracterizado pela insegurança jurídica, de fio a pavio.”
Zanetti lista problemas como o potencial enfraquecimento dos contratos e o aumento de litígios. “A margem decisória do juiz passaria a ser muito mais ampla,” elevando a insegurança para as empresas – ao possibilitar, por exemplo, a condenação por danos indiretos e dificilmente calculáveis de maneira objetiva.
“A característica deste projeto é essa imprecisão absoluta,” afirmou Zanetti. “Eles colocam pontos de incerteza que são praticamente insolúveis.”
Na entrevista a seguir, o jurista analisa alguns dos pontos que mais causam apreensão.
O atual Código Civil brasileiro está em vigor há pouco mais de duas décadas. Houve muitas transformações na sociedade e na economia nesse período. Havia uma demanda no meio jurídico por uma reforma?
Não havia essa demanda. Nós, que somos professores dessa área, fomos todos surpreendidos quando houve a notícia de que se estava estudando alterar o Código Civil dessa maneira.
O Código Civil é modificado todo o tempo, mas são modificações pontuais. Mudanças de grande magnitude são episódicas.
Os Códigos Civis são pensados para durar 80, 100 anos. Os principais do mundo são o alemão, o italiano e o francês. O italiano está em vigor desde 1942. O alemão está em vigor desde 1900. E o francês está em vigor desde 1804.
O nosso Código é de 2002, entrou em vigor em 2003. É muito jovem. Há uma discussão sobre como evoluir em algumas áreas. Quando veio a notícia de que se estava pensando em formar uma comissão temporária no âmbito do Senado para modificar o Código Civil, isso foi um choque para todos nós.
O primeiro Código Civil brasileiro é de 1916, entrou em vigor em 1917. E aí nós tivemos o Código atual, que é de 2002, entrou em vigor em 2003. A modificação que está sendo proposta agora é mais incisiva e mais impressionante do que quando nós trocamos de Código, há vinte anos.
Por que então surgiu esse projeto do senador Rodrigo Pacheco?
Essa é uma pergunta que permanece sem resposta.
Não foi a necessidade de fazer atualizações por causa do impacto de transformações como as das novidades no campo digital?
Isso é o que tem sido veiculado. Mas dei exemplos de países que estão tão na era digital quanto o Brasil e os códigos deles, mais antigos, continuam em vigor.
Não me convence minimamente essa justificativa baseada na nova sociedade digital. O último lugar em que deveríamos mexer em assuntos de tecnologia é o Código Civil.
Por quê?
As ferramentas com as quais nós trabalhávamos há dez anos já são muito diferentes das que nós usamos hoje. Daqui a dez anos a gente não sabe onde a gente vai estar.
Uma lei com a pretensão de durabilidade não deve ser o lugar para tratar de questões de tecnologia. É muito mais fácil você fazer isso numa lei específica.
Nós temos o Marco Civil da Internet, que é razoavelmente recente e poderíamos ter uma lei própria para o tema.
Além do mais, o Livro do Direito Digital desse novo Código Civil não foi bem elaborado. Tem recebido muitas críticas.
Alguns juristas afirmam que o processo de discussão e elaboração desse projeto foi muito acelerado, sem o debate necessário. Qual a sua avaliação?
A iniciativa foi do então presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que constituiu a comissão para elaborar o texto. Nas palavras dele mesmo, foi um trabalho em tempo recorde, que é algo que não combina muito com esse tipo de lei.
A primeira reunião foi em setembro de 2002. A primeira minuta apareceu em fevereiro de 2024.
É um tempo muito curto para produzir um texto dessa importância. Quando o texto é apresentado aos membros da comissão, vários deles apontam a existência de diversos erros e problemas, como o uso de linguagem que não é jurídica.
Foi uma minuta muito grosseira. Mas eles tinham pressa, precisavam entregar o texto final antes do término da presidência de Pacheco.
Tanto é que o projeto foi apresentado no último dia da presidência dele. Então deram um prazo de 11 dias, de 26 de fevereiro até 8 de março, para que houvesse comentários. Depois foi discutido em algumas reuniões para discutir esse texto. Entre a primeira reunião e o texto final do projeto foram apenas 45 dias – para produzir um texto de 1.200 artigos, algo impraticável.
As reuniões foram públicas, assisti a todas. O que aconteceu? Menos de 10% dos artigos foram objeto de debate. Aconteceram coisas que não são compatíveis com um projeto dessa importância.
Como professor de Direito, não consigo nem entender por que você faz um projeto dessa magnitude e desse jeito. Acho incompatível com o tempo de vigência do código e incompatível também com a dificuldade da tarefa que eles se propuseram.
Mais de mil artigos não foram objeto de nenhuma discussão. Não teve nenhum debate sobre esses pontos no âmbito da comissão, o que chama muito a atenção.
Vimos reclamação dos membros da comissão dizendo, ‘Opa, não estou sabendo que isso foi modificado.’ Tem texto que é posto em votação, as pessoas não sabiam qual era o texto.
Foi um processo todo corrido, atabalhoado, sem reflexão. O que sobrevém disso é um projeto que é caracterizado pela insegurança jurídica, de fio a pavio.
Como será a tramitação no Congresso?
Pacheco deu uma entrevista recentemente dizendo que espera que o Senado aprove isso até o final do ano. Acho chocante, porque não é um Projeto de Lei comum que possa pular etapas, precisa de uma tramitação especial, passar por diversas comissões.
Por isso, 17 entidades do mundo do Direito já disseram que o trâmite não pode ser acelerado.
Quais são, em sua avaliação, os principais problemas no texto apresentado? Tem se falado da falta de precisão e ambiguidade dos artigos.
Os problemas são mais graves do que pequenas ambiguidades. Ele tem conceitos que não fazem nem parte da linguagem do direito.
Toda área tem uma linguagem técnica. Temos um número importante de noções que estão propostas nesse texto e eu, como professor, não sei explicar. São textos de lei sem paralelo em nenhum outro país.
O Direito dos contratos em particular, o direito dos negócios, é um Direito bastante estável. A gente tem muita comparação entre os países porque os negócios são feitos em escala global, largamente.
Quando você olha no texto do Código Civil, como está sendo proposto, tem ideias ali que a gente nunca ouviu falar. Isso é tão mais chocante quando você vê que isso foi verbalizado até pelos próprios membros da comissão.
Vimos nas reuniões da comissão pessoas dizendo que não podemos ter determinada regra porque nós não vamos saber qual é o significado disso. Uma ministra do Superior Tribunal de Justiça, uma professora da Faculdade de Direito da USP, dizendo que isso é algo perigoso.
Poderia dar exemplos?
Um dos mais chocantes é o relativo aos contratos. O contrato vai deixar de ser o que as partes quiseram e vai ser aquilo que o juiz diz que ele tem que ser.
Isso terá um efeito sistêmico. Se não há segurança na disciplina dos contratos, não há segurança em praticamente nada. Toda atividade econômica é organizada em torno de contratos.
Isso é gravíssimo. A gente não pode subestimar o problema disso. Em nenhum país civilizado há liberdade absoluta para os contratos. O que, entretanto, não pode ocorrer, e é o que o projeto propõe, é você ter um controle com base em critérios que são desconhecidos a priori.
O projeto fala que os contratos têm que ter um controle com base em ideias de confiança, simetria, paridade, função social. Nada disso tem um sentido jurídico preciso. Paridade e simetria não têm nem sentido jurídico. São palavras muito soltas.
O que esse projeto acaba por permitir é um controle só a posteriori. Eu faço primeiro e só vou descobrir lá na frente se eu podia ou não podia ter feito quando chegar o fim eventual litígio. A litigiosidade que esse tipo de regra pode causar é imensa.
Nós estamos num país que tem 80 milhões de processos em curso. Então, você imagina, se você cria esse tipo de regra, cujo conteúdo é desconhecido, e eu não sei nem se ele pode vir a ser conhecido, você cria uma margem para uma intervenção no domínio da economia gigantesca.
A mesma coisa ocorre quando eles modificam a ideia de indenização. Desde que o mundo é mundo, a indenização é medida pelo dano. É uma obviedade.
Eles mexem nisso para dizer que pode ser o dano, mas pode ser o valor do direito, para dizer que você pode ter uma sanção de caráter punitivo e pedagógico. Punição é um problema lá do Direito Penal, não é um problema do Direito Civil.
Imagina o efeito disso no mercado de seguros.
Qual seria o impacto?
Não há como ter uma precisão mínima para calcular prejuízo. Não acho que o mercado de seguros vá deixar desistir, mas ele vai ficar mais caro. É evidente. O risco da seguradora passa a ser maior.
Estão colocando que você pode ser condenado a indenizar até dano indireto. Isso abre a porta para qualquer coisa.
A característica desse projeto é essa imprecisão absoluta. Eles colocam pontos de incerteza que são praticamente insolúveis.
Posso dizer com segurança que se esse projeto for aprovado, nós vamos demorar 80, 90 anos para a gente voltarmos aonde estamos hoje.
Vemos hoje denúncias de venda de sentenças e decisões revertidas em instâncias superiores depois que empresas contrataram escritórios que têm entre seus sócios parentes de ministros nos Tribunais de Justiça. São pontos de queixas frequentes, nos bastidores, por parte de empresários e advogados. Pelo que o senhor está dizendo, esse novo Código Civil poderia agravar problemas como esses, não?
Não saberia falar sobre influência nos gabinetes dos filhos de ministros. O que eu posso te dizer com certeza é que a resposta à sua pergunta é inteiramente positiva, porque a margem decisória do juiz será muito mais ampla.
Pior, a gente não sabe onde ela termina. É isso que é o mais assustador.
Se você tem parâmetros conhecidos, as pessoas podem se organizar. O problema aqui é mais grave. Serão parâmetros desconhecidos e que acho que nem podem vir a ser conhecidos.
Não sabemos muito bem qual será a regra do jogo, teremos que ficar aguardando para descobrir lá na frente. É quase uma delegação de competência do Legislativo para o Judiciário.
É gravíssimo para um país é que a gente passa o tempo todo discutindo o custo do Brasil.
Se eu fosse um agente econômico, eu estaria apavorado, porque como é que eu me organizo diante de um texto desses.
Algum aspecto positivo para destacar?
Da parte de economia, é só para trás. Só para trás. Um colega me disse que se um texto desse passar, nós vamos passar vergonha no cenário internacional. E eu concordo com ele.