É uma questão de coerência.
Não se pode subir ao palco para criticar um sistema de crenças inventado pelos outros e agir de modo diferente.
Mas no espetáculo Ficções, a atriz Vera Holtz, aos 71 anos, mantém esta coerência e transforma não só sua narrativa pessoal e profissional, como também contribui para mostrar que uma outra realidade é possível no teatro brasileiro.
A peça já foi vista por 75 mil espectadores em 20 cidades do Brasil e de Portugal desde que estreou em setembro de 2022 – contradizendo a narrativa de que as produções não se sustentam por longos períodos.
A montagem é uma adaptação do diretor Rodrigo Portella para o livro Sapiens, Uma Breve História da Humanidade, de Yuval Noah Harari, e recentemente voltou ao Teatro Faap, em São Paulo, depois de lotar a mesma sala de janeiro a março do ano passado.
“Nós investimos em uma peça longeva e não criamos um projeto deste tamanho para abandoná-lo,” Vera disse ao Brazil Journal. “É necessário persistir quando se acredita nas coisas.” (A artista aparece no palco acompanhada do violoncelista Federico Puppi.)
A obra do historiador e filósofo israelense vendeu mais de 23 milhões de exemplares mundo afora e trata da capacidade do homem de inventar histórias, compradas pelo coletivo sem questionamentos.
O livro discute noções de Estado, religião, economia e comportamento. Estes temas serviram de inspiração para 14 cenas sobrepostas, que formam um recorte capaz de dialogar com as ideias existencialistas de Harari.
Em uma linha performática, Vera representa diferentes imagens, como a de um fóssil da espécie humana, uma mulher que larga tudo para virar nômade e até mesmo a um asno.
“É quase um jogo infantil em que digo para mim, ‘agora, sou um asno’, e interajo com a plateia lançando interrogações comuns a todo mundo, assumindo outras vozes,” explica.
A agenda está fechada até o fim do ano, e a ideia, para 2025, é uma excursão por países de língua portuguesa, como Angola, Cabo Verde e Moçambique.
Claro que Vera não deu a largada em Ficções com baixa expectativa, mas o impacto em sua vida foi maior do que imaginava.
Quando estreou, estava há uma década longe dos palcos brasileiros – tinha feito a peça Palácio do Fim, dirigida por José Wilker em 2012 e, depois, só uma turnê portuguesa da comédia Intimidade Indecente, junto do ator Marcos Caruso, em 2019.
Quando veio o trauma da pandemia, a artista achou que era a hora da reinvenção.
“Começou o encerramento de um grande ciclo, cheguei aos 70 anos e enxerguei o mundo de outra forma,” afirma. “Até então, trabalhava com uma longa expectativa de vida, com o objetivo de fazer um pé-de-meia, e vi a necessidade de encarar o presente, pensar, sem dramas, que a morte se aproximava.”
O corpo já não respondia do mesmo jeito, a voz falhava de vez em quando, a energia não era a mesma – ainda mais depois de dois anos confinada em casa por causa da covid.
Vera voltou ao palco insegura de seus limites, mas viu que dava conta. O contrato com a Rede Globo venceu logo depois do começo da temporada, em dezembro de 2022, e representou uma nova chacoalhada. Tudo bem, a atriz saiu da emissora com a alma lavada, cheia de amigos e trabalhos inesquecíveis em mais de três décadas de casa.
“Televisão é um exercício constante em que você aprende com o ator que contracena, com o diretor, o contrarregra, o maquiador, o cabeleireiro, e sempre amei fazer novela.”
Ela confessa, porém, que nos últimos anos sentia um esvaziamento tomar conta da alma, e a realidade se sobrepunha constantemente à imaginação mesmo depois de ouvir o diretor gritar “ação” e disparar a câmera.
“Teve um dia em que estava em uma carroça, gravando uma cena na chuva, e pensava que ali era a Vera, e não a personagem,” lembra. “Entendi que começava a trair as escolhas feitas em minha trajetória e certas coisas não faziam mais sentido.”
A carreira ascendente de Ficções foi o empurrão de que sua autoestima precisava para revisar os conceitos que um dia comprara.
Vera recebeu o Prêmio Shell de melhor atriz no ano passado pelo espetáculo e, nessa maré de renovação, saiu do Festival de Gramado vencedora do Kikito por seu desempenho como a protagonista do filme Tia Virgínia, dirigido por Fabio Meira.
“Chega uma hora em que a única maneira de se manter saudável é pensando em nós mesmos, dizendo não, e tem muita gente que não aceita quando ouve as nossas negativas.”
Nesta revisão de carreira, a artista acentua a pegada como diretora teatral e assina o monólogo O Estrangeiro – Reloaded, protagonizado por Guilherme Leme Garcia, em cartaz no Teatro Vivo, na capital paulista.
Trata-se da revisão de um projeto realizado há 15 anos com o mesmo Leme que abriu as portas para outras investidas no terreno de encenadora, como os solos Sonhos para Vestir (2010), com a atriz Sara Antunes, e A Peste (2019), com o ator Pedro Osório.
“O Estrangeiro – Reloaded é um olhar novo, simplificado para o personagem de Albert Camus,” antecipa. “Ele sai para tomar sol no pátio e narra sua história antes de a pena de morte ser executada.”
Vera é livre. Faz parte de uma geração que entendeu que não precisava se casar, ter filhos, trabalhar feito louca, separar do marido e se culpar por não dar conta de tudo.
“As mulheres da minha idade puderam falar, ‘eu faço isso e não faço aquilo, ponto final’, e fugiram daquele modelo tão carregado de responsabilidades.”
Hoje ela percebe um avanço considerável, que resulta em uma dinâmica mais leve e coerente com a história de cada mulher. “Você pode querer ou não filhos e, se deixar para decidir mais tarde, existe a opção de congelar os óvulos.”
A atriz não se arrepende de não ter abraçado a maternidade, e brinca que formou famílias em São Paulo, no Rio e até em Portugal que lhe abastecem de carinho.
Cobranças, nesta altura do campeonato, não admite de forma nenhuma. A única possível, mesmo assim com um sorriso irônico, diz respeito a Vera Viral, o alter ego criado em 2015 no seu perfil do Instagram, que foi na contramão da exposição pessoal e posta retratos produzidos com rigor e subtextos estéticos.
“Estou cheia de ideias para voltar às redes, e acho que vou ter tempo nessa minha estada em São Paulo,” diz, sem tanta convicção. “A Vera Viral é muito mais independente que a Vera Holtz: ela sim, só aparece quando quer.”