Depois de 12 anos, retornei à China a trabalho e encontrei um país completamente repaginado.

Confesso que minha primeira vez por lá não foi um encanto imediato: havia poluição, trânsito, sujeira, pobreza e um certo desleixo.

Mas desta vez, estando nas duas megalópoles, Shanghai e Pequim, além de cidades no interior, cheguei a pensar que estava em outro país.

Arquitetura moderna, arranha-céus, marcas globais em todo o canto, estradas impecáveis, inúmeros carros elétricos, ciclovias e – o mais impressionante – sem favelas. Em 2020, a China erradicou a pobreza, num esforço do governo e da população para que ninguém voltasse a enfrentar as dores da fome que assombrou seu passado.

Visitando empresas como Alibaba, JD, Tencent, Huawei e ByteDance, e conversando com os moradores locais, pude entender o quanto esta transformação está redesenhando as regras no mundo dos negócios. Há uma geração com apetite que desafiou padrões e continua a impulsionar o crescimento deste gigante.

Falam pouquíssimo o inglês, são pragmáticos, extremamente disciplinados e pontuais, têm o maior número de engenheiros do mundo, são early birds (acordam cedo e jantam cedo), adeptos da medicina chinesa (não tem farmácias, e remédios alopáticos somente no hospital para casos críticos), adoram crianças, preferem os gatos e, unanimemente, querem prosperar.

Nas mais de 24 horas nos voos de volta ao Brasil, fiquei pensando o que esta China tem para nos ensinar e os desafios que vem pela frente.

A revolução do celular nas zonas rurais. Que a China é um importante centro de fabricação de smartphones e está na vanguarda da tecnologia 5G, todos já sabíamos. Porém, o que mudou na última década foi a digitalização das áreas rurais. O governo investiu em infraestrutura, incentivou empresas a lançarem aparelhos mais acessíveis, instrumentalizou os agricultores. Hoje, eles consultam a meteorologia, os preços de commodities, recebem dicas de cultivo para melhorar a produtividade, além de pagar contas, receber pagamento dos clientes e até agendar consultas online com médicos, sem precisar se locomover para outra cidade. O acesso a informações, educação, serviços financeiros e oportunidades de negócios nas zonas rurais evitou uma onda migratória do campo para a cidade.

O poder dos QR Codes. Onipresentes na vida dos chineses, os códigos QR (Quick Response) têm sido uma ferramenta poderosa para impulsionar a eficiência, a conveniência e a inovação. Conveniência como meio de pagamento em plataformas AliPay e WeChat, onde as pessoas pagam praticamente tudo, de serviços de táxi, compras em lojas, restaurantes, hotéis e transporte público, além de fazerem transferência de valores (tipo PIX) e até doações para caridade. Eficiência através de pedidos digitais, com baixa necessidade de interação pessoal, baixo custo, sem uso do dinheiro em espécie e ausência da necessidade de trocos ou recibos. Inovação pelas empresas que coletam os dados do consumidor, preferências e hábitos, podendo criar campanhas de marketing customizadas com maior aderência e retorno.

A era dos ecossistemas. As empresas se tornaram conglomerados que buscam oferecer soluções completas aos seus clientes. São estruturas formadas através de aquisições de parceiros externos ou da criação de new ventures que, conectados digitalmente, conseguem gerar maior valor juntos do que isolados. Com isso, nascem os super apps, que oferecem uma ampla gama de serviços e funcionalidades em um único ecossistema integrado. O AliPay é o melhor exemplo, tem 1,3 bilhões de usuários e penetração de 93% no País. Num único aplicativo pode-se pagar contas, transferir valores, chamar o táxi, traduzir idiomas e planejar viagens com reservas de hotéis e passagens. Me senti tendo Uber, Booking, PayPal, Google Tradutor e o cartão de crédito num único click, sem ter que mudar de tela e, o melhor, usando menos memória do celular.

Cultura de empreendedorismo. Fomentada por uma combinação de fatores que inclui políticas governamentais, inovação tecnológica e uma geração ambiciosa, a China tem diversos cases de sucesso. Desde a startup ByteDance, mãe do TikTok, que virou uma potência global, até conglomerados que não colocaram todas as fichas no crescimento orgânico e foram atrás de parcerias e aquisições para se desenvolver. A Tencent, a maior empresa de internet da China, é um exemplo. Procurou investir em startups como a Didi (99Taxi), a Meituan (o iFood da China) mas também em empresas globais como Spotify, Tesla, Snapchat e Riot Games (League of Legends) que inclusive acabou por adquirir a totalidade da empresa em 2015. Literalmente, um sócio em “on the job” training.

Da imitação à inovação. A China sempre foi vista como um hub para produzir cópias baratas e de baixa qualidade. O Made in China não era motivo de orgulho. Hoje a China é trendsetter em diversos setores que não se limitam às áreas de tecnologia. Marcas de roupas, bicicletas elétricas, produtos de design, perfumes de luxo, alimentos com embalagens ecológicas, posso listar pelo menos uma dúzia de marcas incríveis que me impactaram em uma semana. Agora há um segmento em que eles realmente surpreendem: os carros elétricos. O destaque vai para a NIO, uma marca que está revolucionando e em breve teremos notícias no Ocidente. Com design sofisticado, a marca criou baterias recarregáveis mais simples e eficientes, serviços pós-venda com foco total nos clientes e programas de fidelidade que não vejo nenhuma marca global replicar. Convido você a se lembrar como foi sua última experiência de compra de carro aqui no Brasil. A minha, inclusive recente e de carro elétrico, foi terrível.

Prosperar, a palavra de ordem. A ascensão da classe média – que hoje soma 450 milhões de pessoas – e a erradicação da pobreza são resultados de um crescimento de PIB anual muito acima da média global. Simples assim. Basta olhar os gráficos comparativos de crescimento anual por país e ver que o dragão está soltando fogo. Todos querem prosperar, ter uma vida melhor, ter dignidade. Inclusive soube que as pessoas escolhem com quem se casar pelo que fazem profissionalmente, pela ambição pessoal e sonhos futuros, para que possam progredir juntos. E para isso não medem esforços na dedicação e compromisso com o trabalho.

Meta é para ser cumprida. Meta na China é coisa séria, não wishful thinking.  São definidas a partir dos planos quinquenais orquestrados pelo governo. E para garantir a execução, existe um departamento nos órgãos públicos que controla as etapas, o orçamento e os cumprimento dos deadlines, praticamente um PMO (Project Management Office). E tem mais: os políticos também são regidos por meritocracia, seja para promoções ou demoções (quando não batem as metas). Para 2050, a grande meta é tornar a China carbono neutro. Nada simples para o país onde o carvão ainda é a fonte dominante de energia. Mas lá, o impossível pode ser possível.

Guanxi e as relações pessoais. Nos negócios chineses, estabelecer e manter relacionamentos fortes com parceiros, clientes e fornecedores é frequentemente considerado mais importante do que contratos formais. A confiança e a obrigação mútua desempenham um papel significativo nas interações comerciais. Em outras palavras, como os chineses preferem fazer negócios com pessoas com quem têm uma conexão pessoal, pode ajudar se você for apresentado por um intermediário influente. E quanto maior o status social que sua conexão tiver, mais bem-sucedido você provavelmente será em ser apresentado às pessoas certas e aos principais tomadores de decisão.

Mas nem tudo são flores.

A China tem enormes desafios pela frente. O primeiro é o envelhecimento da população, que poderá causar uma falta de jovens com vigor e energia para continuar impulsionando a economia.

O segundo, por outro lado, é a taxa de desemprego entre os jovens que saem das universidades (entre 17 e 24 anos), que bateu recorde em agosto, chegando a quase 22%. Tentei investigar mais sobre este tema e entender se os influencers da internet são autônomos e, portanto, não contam como ativos no mercado de trabalho. Não consegui a resposta e continuei sem entender onde estão estes jovens.

Outra questão é sobre vigilância e fiscalização. Todo mundo sabe que está sendo monitorado, as câmeras nas ruas, os rastreadores no celular, os algoritmos no dia a dia – mas isso é um tema que não se questiona publicamente.

Por fim, o último ponto que ressalto é sobre as iniciativas ESG. As empresas já compartilham ações relevantes na área social, começam a medir os impactos positivos de ações de sustentabilidade, mas ainda são comedidas nas ações para uma governança mais diversa e inclusiva.

Anna Chaia é conselheira de administração de empresas de capital aberto e mentora de startups da Endeavor.