Entre os papéis inéditos que descobriu em posse de herdeiros de Fernando Pessoa, uma carta datada de 1906 intrigou o americano Richard Zenith.

Em suas extensas pesquisas sobre a adolescência do poeta português em Durban, na África do Sul – então uma colônia britânica – Zenith havia composto a imagem de um rapaz tímido, que fizera poucas amizades na escola.

Mas o remetente da carta, um antigo colega que rememorava os tempos de estudante, incluía Pessoa em uma turma de amigos pândegos e o retratava como um garoto expansivo.

Zenith só começou a suspeitar dessa história quando leu o nome de um certo Stool, que já vira antes nos exercícios literários juvenis de Pessoa. E matou a charada quando conseguiu decifrar a garatuja que assinava a carta: G. Nabos, ou Gaudêncio Nabos, outro personagem criado pela imaginação solitária do estudante em terra estrangeira.

Os tais amigos, inclusive o remetente, eram todos fictícios: Fernando Pessoa havia escrito a carta para si mesmo.

O episódio ilustra o desafio que Zenith enfrentou (e venceu com louvor) para compor Pessoa – Uma Biografia (tradução de Pedro Maia Soares; Companhia das Letras; 1.136 páginas que realmente valem a pena).

Maior poeta português desde Luís de Camões, Fernando Pessoa é uma personalidade difícil de devassar e um escritor impossível de definir.

Stool e Nabos são precursores dos heterônimos de Fernando Pessoa – autores imaginários que conviviam e até competiam com seu criador.

Nos escritos do poeta, há dezenas desses personagens, mas três distinguem-se como poetas de estilo único: Alberto Caeiro, poeta bucólico que canta a beleza das coisas objetivas; o médico Ricardo Reis, que faz odes clássicas; e o engenheiro Álvaro de Campos, que canta o caos da vida moderna em versos livres e exacerbados. “Pode-se dizer que os quatro maiores poetas de Portugal do século XX foram Fernando Pessoa,” escreve Zenith.

Escritor prolífico (“vulcânico”, segundo o biógrafo) mas desorganizado, Pessoa publicou poucos livros em vida, todos com o próprio nome – quatro obras em inglês e só uma coletânea de poemas em português, Mensagem, de 1934.

Nascido em Lisboa em 1888, morou com a família de 1896 a 1905 em Durban, onde seu padrasto era o cônsul português. Depois disso, nunca mais viajaria ao exterior.

Pessoa dispersou seu talento (e o dinheiro da família) em empreendimentos infrutíferos e projetos abortados. Cursou Letras, mas não se formou; investiu a herança que a avó paterna lhe deixou em uma gráfica e editora, que faliu; estudou ocultismo, tentou contato mediúnico com espíritos e fez mapas astrais; criou um esquisito slogan para o lançamento da Coca-Cola em Portugal (“No primeiro dia: Estranha-se. No quinto dia: Entranha-se”); profetizou a volta do rei Dom Sebastião e o surgimento de um novo império português.

O biógrafo que se debruça sobre um personagem tão múltiplo corre o risco de se perder na sua voragem visionária. Mas Zenith mantém o pulso firme, equilibrando a narrativa dos fatos com a análise literária.

Especialista em Pessoa que já editou obras inéditas do poeta e traduziu Livro do Desassossego para o inglês, ele atravessou dezenas de milhares de papéis dos arquivos pessoanos para produzir esta que é a segunda biografia de fôlego do “poeta fingidor”. A primeira, de João Gaspar Simões, saiu em 1950.

A complicada sexualidade de Pessoa é examinada pelo biógrafo com sensibilidade e desassombro. Zenith recupera poemas pouco conhecidos de tema homoerótico – como Antinous, em inglês – e várias notas íntimas em que Pessoa fala da atração por homens, mas diz que ele não teve ligação física com nenhum amigo. Com sua única namorada, Ofélia Queiroz, trocou cartas e beijos ardentes, mas não mais que isso. De acordo com Zenith, tudo indica que Pessoa tenha morrido virgem.

A biografia também mapeia as posições cambiantes de Pessoa diante da turbulenta política portuguesa de seu tempo.

O poeta foi republicano inflamado, mas depois passou a rejeitar o caos e a vulgaridade da democracia. No fim da vida, opôs-se à ditadura de Antônio Salazar, embora seu Mensagem tenha sido premiado pelo governo por sua “exaltação nacionalista”.

Em novembro de 1935, quando Pessoa morreu aos 47 anos, provavelmente de uma obstrução intestinal, muitos de seus poemas permaneciam inéditos, e outros haviam sido publicados só em revistas literárias como Orpheu, Athena e Presença. Poucos leitores sabiam então da dimensão oceânica de sua obra, hoje universalmente reconhecida.

“Há mais eus do que eu mesmo,” disse Ricardo Reis na última ode que escreveu, ou que Pessoa escreveu em seu nome. A monumental biografia escrita por Richard Zenith chega perto de trazer todas as pessoas que havia em Pessoa.