O ritmo da retomada pós-pandemia da economia chinesa frustrou as expectativas, mas deverá ganhar força nos próximos meses, afirma Louis-Vincent Gave, o CEO e um dos fundadores da consultoria Gavekal.

Segundo o consultor, que acompanha de perto há duas décadas a transformação da economia asiática, a China passa por transformações estruturais, mas não está prestes a implodir.

“Se você olhar para os dados recentes, a manufatura está fraca e o setor imobiliário está fraco, mas os serviços estão indo bem,” afirma Louis. “As exportações vão bem.”

 

A retomada da expansão financeira na China e o efeito do El Niño desenham um cenário favorável para as commodities agrícolas, afirma Louis. Mas, com a crise no setor imobiliário chinês, não deverá ser um grande ano para o minério de ferro.

Segundo Louis, quanto mais americanos e europeus tentam banir os chineses, mais os negociadores brasileiros terão uma “carta na manga.” A China, diz ele, “fica feliz em fazer mais negócios com o Brasil e menos com a Austrália, menos com a Nova Zelândia, menos com o Canadá, menos com os EUA.”

O consultor, porém, destaca o avanço na economia de outros países emergentes, mercados que oferecem ao Brasil oportunidades para diversificar suas exportações. Hoje, um terço das vendas brasileiras tem a China como destino.

Louis fundou a Gavekal em sociedade com o pai, o economista francês Charles Gave, e com o jornalista britânico Anatole Kaletsky, em 2001. Anteriormente, tinha trabalhado como analista no BNP Paribas.

Com escritório inicialmente em Londres, a consultoria transferiu logo em seguida a sede para Hong Kong. O intuito foi oferecer mais informações aos seus clientes sobre a China e o mercado asiático – que viria a se transformar no principal motor da economia mundial.

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Na conversa a seguir, Louis comenta a razão de acreditar que o mundo vive hoje em “um ambiente estruturalmente inflacionário.”

Por que o crescimento da China, depois da reabertura da economia, frustrou as estimativas?

Colocando minhas cartas na mesa, devo reconhecer que eu esperava que a reabertura fosse muito mais forte do que está provado. Sempre que você erra, você precisa fazer uma revisão e pensar: O que eu não vi?

Com o benefício da retrospectiva, existem alguns fatores que devem ser considerados. Provavelmente foi um erro ter imaginado que a reabertura do comércio na China tivesse o mesmo resultado visto no Ocidente.

No mundo ocidental, os governos imprimiram muito dinheiro. Houve um estímulo fiscal maciço nos EUA e na Europa. Quando as pessoas voltaram a circular, elas tinham muito dinheiro para gastar.

A China nunca fez isso. Se você olhar para os empréstimos bancários, eles só começam a aumentar em janeiro. Até então, estavam encolhendo. Há sempre um intervalo de seis, nove meses entre a flexibilização das políticas monetárias e o impacto na economia. Veremos os efeitos no próximo semestre. 

Mas houve também uma mudança estrutural na economia chinesa. Todos os ciclos anteriores foram sempre liderados pela construção civil, particularmente pelos imóveis. O governo injetava dinheiro, as incorporadoras pegavam esses recursos e a primeira coisa que faziam era comprar terrenos das autoridades locais, porque a terra era vista como um recurso raro. Não foi o que vimos acontecer agora.

As vendas de terrenos permaneceram estagnadas. O que eles estão fazendo é recomprar seus títulos, que estão sendo negociados a US$ 0,60 ou US$ 0,50 por dólar.

Por que houve essa depreciação?

Porque eles emitiram muito. A ação contra os excessos do setor imobiliário começou antes da Covid. As incorporadoras ficaram sem acesso a capital, então metade delas faliu. As mais agressivas quebraram. As que sobreviveram foram as mais conservadoras.

Portanto, há toda essa mudança estrutural subjacente. Isso significa que a economia vai implodir? Na verdade, não. Se você olhar para os dados recentes, a manufatura está fraca e o setor imobiliário está fraco, mas os serviços estão indo bem. As exportações vão bem.

Do ponto de vista dos exportadores brasileiros, o que esperar? Um cenário favorável para alimentos e menos promissor para o minério de ferro?

Teremos a aceleração da expansão monetária e a retomada dos empréstimos bancários na China. Ao mesmo tempo, veremos os efeitos do El Niño. Tudo isso aponta para preços firmes nas soft commodities.

Teremos preços mais altos do minério de ferro? Possivelmente não. Houve uma alta na expectativa da reabertura chinesa, mas a valorização não se sustentou. Não será um ano fantástico para o minério, mas não acho que será terrível.

Nos últimos 25 anos, nós nos habituamos a pensar que todo o crescimento vinha dos EUA ou da China. Agora gastamos muito tempo especulando se os EUA vão entrar em recessão e por que a reabertura da China é decepcionante. Ficamos presos nessas questões porque, por 25 anos, esse foi o único jogo de verdade.

A realidade é que outros mercados emergentes estão avançando. O México está crescendo e o Sudeste Asiático está crescendo. Junto com esse boom, vêm os investimentos com infraestrutura. Estamos vendo grandes obras em todo o Sudeste da Ásia, no Oriente Médio e também na Índia.

Ninguém será capaz de replicar o que a China fez entre 2001 e 2011. Em dez anos, eles despejaram mais concreto do que os EUA ao longo de todo o século 20. Foi alucinante. Mas todo esse pessimismo atual ignora completamente o fato de que vemos um despertar em outros mercados emergentes.

Hoje, um terço de todas as exportações brasileiras tem a China como destino. Você acha que essa transformação na economia mundial será uma oportunidade para o Brasil diversificar seus parceiros?

Vou dizer algo óbvio, um lugar comum: o melhor é sempre ter o maior número possível de clientes. Você não deveria ser tão dependente de um único mercado.

Não porque a China vai encolher, mas porque a Índia vai crescer e a Indonésia vai crescer, e o Vietnã vai crescer, e o México vai crescer. A capacidade de o Brasil explorar alguns desses mercados é bastante razoável.

A grande tendência geopolítica dos últimos anos tem sido a tentativa do Ocidente de isolar a China, num  grande esforço de reduzir o papel chinês nas suas cadeias de produção.

A maioria dos países emergentes realmente não tem vontade de entrar nessa onda. Querem, lógico, negociar com o Ocidente, mas também não querem que o Ocidente diga a eles como eles devem negociar e com quem devem manter relações.

O presidente Lula teve uma visita muito bem-sucedida à China. A relação Brasil-China está mais forte do que nunca. A vantagem para países como o Brasil é que quanto mais o mundo ocidental decide banir a China, mais o Brasil tem uma carta na manga. Poder dizer à  China: “Somos um parceiro comercial confiável e nunca vamos julgá-lo por questões políticas. Não vamos sair por aí condenando o que você está fazendo em Hong Kong ou mencionar o que você está fazendo em Xinjiang. Isso não é da nossa conta. Estamos felizes em fazer negócios com você.”

A China, obviamente, fica feliz em fazer mais negócios com o Brasil e menos com a Austrália, menos com a Nova Zelândia, menos com o Canadá, menos com os EUA.

A China também está pensando em como reduzir a participação dos EUA em sua cadeia de suprimentos, assim como ficam menos dependente de Canadá e Austrália. O Brasil é um grande beneficiário disso.

Recentemente, você escreveu uma análise sobre o cabo de guerra entre inflação e deflação. Vamos ter que nos acostumar com patamares mais altos de inflação?

Acabamos de ver os EUA dizerem que vão aumentar a dívida de US$ 31 trilhões para US$ 35 trilhões. O déficit orçamentário atual está acima de 6% do PIB, com um País em pleno emprego. Estamos vendo algo sem precedentes, certo? Normalmente, quando você está em pleno emprego, você tem um superávit orçamentário ou apenas um pequeno déficit orçamentário.

O país acaba de aprovar também o plano para investir US$ 1,5 trilhão em infraestrutura. Onde eles vão encontrar trabalhadores para construir as estradas e as usinas?

Não estou dizendo que os EUA não precisem renovar a infraestrutura, que, em alguns lugares, está caindo aos pedaços. Muitos desses investimentos são necessários, mas é o tipo de coisa que se faz quando se está em um ciclo de baixa na economia, não com pleno emprego.

Portanto, não acredito que veremos uma desinflação significativa até que haja algum nível de consolidação fiscal, até que os governos digam que vão diminuir o peso deles na economia. Isso foi o que aconteceu na década de 1980, certo, com governos privatizando o que fosse possível e reduzindo a pegada deles na economia.

Onde estamos vendo isso hoje? Em que país ocidental o governo está dizendo que vai reduzir o peso dele na economia? Pelo contrário. Tudo o que vemos é o governo se metendo em cada vez mais coisas. Mais regulamentação, mais gastos, mais tudo. Isso não é uma receita para a desinflação. Então, sim, acredito que estejamos em um ambiente estruturalmente inflacionário.

Você fala que o Brasil tem uma boa posição para se equilibrar entre os países ricos e a China, mas muitos países pobres – e a Argentina, por exemplo – são bastante dependentes da China para financiar seus gastos públicos. Você vê o risco de que esses países possam ter uma situação de armadilha da dívida?

Essa é uma ótima pergunta. Alguns dos mercados emergentes em situação financeira mais frágil estão em dificuldades para pagar suas dívidas. Vimos o que se passou com o Sri Lanka e o Paquistão. A China tem a capacidade de rolar essas dívidas, de maneira similar ao que o mundo ocidental fez com grande parte da dívida latino-americana e africana durante a década de 1980.

 Se você quiser se preocupar com a saúde do sistema financeiro chinês, o maior risco está no mercado imobiliário local. Os superávits na conta corrente dão à China a capacidade de empurrar as coisas para frente, varrer as coisas para debaixo do tapete. Não estou muito preocupado com as chamadas armadilhas da dívida. Estou mais preocupado com a inflação estruturalmente alta, que é, aliás, como você lida com o excesso de dívida.

Mas países como a Argentina, que dependem de maneira crescente do crédito chinês, acabam se afastando dos EUA, não?

A China desembarcou muito dinheiro para a Argentina, enviou muito dinheiro para a Venezuela, em acordos de petróleo por dívida. Tem sido uma maneira de a China conquistar pontos de apoio. Mas a China provavelmente perderá o dinheiro que emprestou à Venezuela e perderá o dinheiro emprestado à Argentina, assim como todo mundo que já emprestou dinheiro à Argentina ou à Venezuela. A China está aprendendo a lição que todo mundo aprendeu em algum momento, que não se deve  emprestar dinheiro para a Argentina.

E por que Joe Biden tem reaproximado os EUA da Venezuela?

Parte da razão pela qual os EUA estão mudando de atitude é porque o relacionamento com a Arábia Saudita se deteriorou acentuadamente. A Arábia Saudita e o Irã agora são bons amigos. Os EUA estão perdendo cada vez mais o Oriente Médio. Se não tenho amigos no Oriente Médio e obviamente não sou amigo da Rússia, não vou querer brigar com a Venezuela.

Nesse cenário, o Brasil pode ganhar espaço como fornecedor internacional de petróleo?

O Brasil tem petróleo, assim como a Colômbia, mas com custos de exploração mais elevados. Só é competitivo se o barril estiver garantido acima de US$ 65. A Arábia Saudita tem feito sua parte, garantindo cotações acima desse valor.

Para o Brasil é um cara ou coroa, certo? Porque a Arábia Saudita pode amanhã dizer: Vou esmagar o preço de novo.