As empresas alemãs ocupam o topo da tecnologia industrial. O país, entretanto, não tem nenhum nome de peso na nova economia. Alguém ouviu falar da Apple ou do Google alemães?  

Até que despontou a Wirecard, uma promissora fintech com o potencial de ser uma das maiores do mundo em pagamentos online e transferência de recursos. Numa ascensão de tirar o fôlego, suas ações se multiplicaram por 5 entre o início de 2017 e agosto de 2018, no embalo de resultados a cada trimestre mais expressivos.  

O sucesso inflou o orgulho tedesco, mas investidores ao redor do mundo esmiuçaram os números e notaram que havia algo errado naquela escalada vertiginosa. 

O trabalho investigativo de short sellers e de jornalistas do Financial Times trouxe à tona a maior fraude financeira da história alemã. Agora, a impressionante – e aterradora – história ganhou um documentário: “O Escândalo da Wirecard” (Netflix).

Fundada em 1999 em Munique, a Wirecard por pouco não fechou as portas com o estouro da bolha da internet. Ganhou sobrevida quando o austríaco Markus Braun, um ex-consultor da KPMG, colocou capital e assumiu o comando do negócio. 

A empresa fazia dinheiro fornecendo infraestrutura de pagamento para apostas online e pornografia na internet. Até aí, nada demais. Nos anos seguintes, por meio da fusão com outras companhias, a Wirecard começou sua ascensão explosiva.

A sisudez de Braun não o impediu de assumir o posto de celebridade do mercado alemão e conquistar a admiração dos investidores locais. Em suas apresentações, o CEO emulava o visual de Steve Jobs, vestindo malha preta de gola alta.   

Alçada à categoria de campeã nacional, a fintech contou até com uma mãozinha de Angela Merkel, que, numa viagem à China, intercedeu pela companhia, que vislumbrava um avanço no mercado asiático. 

A Wirecard era extraordinária no PowerPoint – mas poucos se atentavam para a obscura estrutura de seus negócios. 

Em 2008, os reguladores alemães chegaram a identificar irregularidades. Nada que, naquele momento, colocasse em xeque a expansão internacional da companhia. Mas a empresa entrou no radar de short sellers, que viram a possibilidade de ganhar dinheiro alto apostando na debacle das ações. Um deles preparou um dossiê e o entregou ao jornalista Dan MacCrum, do Financial Times.

De Londres, o repórter começou a investigar os números. Recebeu dicas de outros investidores. Seus editores colocaram correspondentes para ajudá-lo. 

A partir de 2015, o jornal publicou uma série de reportagens nas quais apresentava números suspeitos e contas que não ficavam de pé. Os repórteres descobriram laranjas e empresas de fachada: nos balanços, os endereços eram de subsidiárias que movimentavam milhões de dólares; na realidade, eram casas de famílias do interior que ganhavam uns trocados para receber algumas cartas e não fazer muitas perguntas.

Quando as denúncias vieram à tona, a reação de Braun foi afirmar que não passavam de ilações de pessoas invejosas, sem qualquer sustentação. Na Alemanha, as reportagens foram recebidas como ataques às empresas do país. 

A Wirecard, no topo entre as queridinhas do mercado acionário alemão, àquela altura era listada no principal índice da Bolsa de Frankfurt, o DAX. Como os investidores poderiam suspeitar que uma empresa com tal chancela não passava de um enorme engodo? 

Mas as denúncias causaram incômodo. Os jornalistas do FT começaram a receber chantagens e ameaças, e suspeitavam de haver sido hackeados e gravados. Chegaram a ter sua honestidade questionada e foram colocados na geladeira por algum tempo. 

Dan McCrum contou a história no livro “Money Men: A Hot Startup, A Billion Dollar Fraud, A Fight for the Truth”, adaptado para o documentário da Netflix. Ele narra como temeu pela própria vida e de seus familiares em razão da possível ligação de executivos da Wirecard com mafiosos russos.  

A credibilidade do FT foi posta contra a parede, enquanto as ações da Wirecard batiam recordes de valorização. O market cap chegou a US$ 24 bilhões, e, a despeito das reportagens, o Softbank aportou US$ 1 bi na empresa

A ruína viria pouco depois. A CVM alemã decidiu fazer uma análise detalhada das denúncias que iam se acumulado, e uma auditoria independente foi contratada para repassar os números. 

O castelo de cartas desmoronou. Os números bilionários das operações da Ásia eram simplesmente inventados. Em abril de 2020, antes da divulgação da auditoria, as ações da Wirecard eram negociadas a US$ 140. Dois meses depois já tinham virado pó.

Depois de dois anos de investigações, os promotores alemães concluíram a denúncia contra Braun e outros executivos da fintech. O ex-CEO, embora sustente que tenha sido enganado, é acusado de ter sido conivente com a publicação de balanços deliberadamente incorretos entre 2015 e 2018, manipulando o mercado e enganando os investidores. 

Preso em junho de 2020, Braun aguarda julgamento. Não se tem notícia de seu braço direito, o também austríaco Jan Marsalek, que era o chief operating officer da empresa. Ele está na lista de fugitivos da Interpol e especula-se que tenha se refugiado na Rússia. 

A dúvida que fica é: como auditores, reguladores e analistas de mercado não notaram uma fraude tão grotesca e deixaram a trapaça ir tão longe? Nessa história, os mocinhos foram os short sellers e a imprensa investigativa.