Instado a responder à tragédia econômica causada pela pandemia, o Governo precisou fazer uma escolha: ampliar o número de famílias inscritas no chamado Cadastro Único ou criar um novo cadastramento simplificado que pudesse atender rapidamente as famílias brasileiras não cadastradas. Dada a necessidade de atuação rápida e emergencial, optou-se pela segunda via.
 
Contudo, o novo cadastro vem mostrando suas fragilidades. Várias suspeitas em torno da qualidade dos dados surgiram ao longo das últimas semanas.
 
Somando o cadastramento frágil com o valor do auxílio emergencial (R$ 600 por pessoa), temos um benefício que não caberá no orçamento por muito tempo. Com um custo de quase R$ 50 bilhões mensais, a despesa do auxílio emergencial em um mês é maior do que a despesa com o Programa Bolsa Família durante um ano inteiro. O gasto com o auxílio é comparável até mesmo aos gastos com o Regime Geral de Previdência Social.
 
Considerando que ainda não sabemos por quanto tempo o auxílio emergencial precisará ser estendido, o risco agora é que o Estado esgote sua capacidade de oferecer apoio econômico antes de o pior momento da crise ter passado. Ou que o equilíbrio fiscal de longo prazo seja ameaçado, comprometendo permanentemente a estrutura de proteção social brasileira.
 
É inviável tornar o auxílio emergencial permanente. Contudo, os eventos da pandemia ensinam que a nossa rede de proteção social precisa estar mais preparada para lidar com este tipo de emergência no futuro. 
 
O que fazer?
 
Quando o período mais crítico da pandemia tiver passado, estaremos em um mundo muito diferente. Para ficar só nos aspectos econômicos, o setor público estará mais endividado e com menor capacidade de expandir políticas públicas; a miséria, a pobreza e o desemprego estarão maiores; várias empresas deixarão de existir; e a forma de trabalhar em vários setores da economia terá se transformado drasticamente. 
 
Para lidar com essa nova realidade, o Cadastro Único precisa ser universalizado. Mas antes, é preciso entender o que é o Cadastro Único e porque o País pode se orgulhar dele.

Voltado para as famílias com rendimento total abaixo de três salários mínimos ou com rendimento per capita de até meio salário mínimo, o Cadastro Único de Programas Sociais dispõe de dados de mais de 28 milhões de famílias, nas quais vivem mais de 75 milhões de pessoas. É a única base de dados nacional identificada com dados de rendimento e ocupação da população informal, fornecendo informações para mais de 20 programas sociais federais.
 
Por exemplo, as pouco mais de 14 milhões de famílias beneficiárias do Bolsa Família, que recebem, em média, aproximadamente R$ 190 por família, estão no Cadastro Único.
 
Para dar uma ideia do seu poder de focalização, o Cadastro Único faz com que por volta de 90% dos beneficiários do Bolsa Família estejam entre os 40% mais pobres da população, um dos melhores índices de sucesso de um programa de transferência de renda em atingir a população pobre em todo o mundo.

Mas no pós-pandemia, será preciso universalizar o Cadastro Único.

Pessoas em qualquer faixa de rendimento deveriam poder se cadastrar; uma das lições que a pandemia é que todos nós, de uma hora para outra, podemos precisar da rede de proteção social.
 
Além disso, após a pandemia o Programa Bolsa Família precisará ser fortalecido para lidar com um contingente maior de pessoas entrando na pobreza extrema, talvez por muito tempo. 

Será importante reajustar a linha de pobreza extrema dos atuais R$ 89 per capita mensais para um patamar mais próximo da linha internacional de US$ 1,90 por dia per capita PPP (por volta de R$ 150 per capita mensais), de modo a garantir a subsistência das famílias mais pobres. Pode-se aproveitar o momento para também simplificar e aprimorar a estrutura de benefícios do Programa.
 
O Brasil não precisa de um programa de renda básica universal, como defendem alguns.
 
Primeiro, porque já temos mecanismos muito eficientes para direcionar benefícios sociais para a população de baixa renda.
 
Segundo, porque a capacidade de um programa de transferência focalizada em combater a pobreza extrema é muito maior do que a de um programa de transferência universal, em virtude do valor dos benefícios. 

Explico: se o Bolsa Família paga R$ 190 por família para 20% da população, ele pagaria R$ 38 por família se fosse cobrir a população inteira. Tal mudança de foco faria a pobreza extrema aumentar, pois muitas famílias muito pobres que hoje recebem R$ 190 e conseguem sair da pobreza extrema com este valor de benefício não conseguiriam sair da pobreza extrema se o benefício fosse de R$ 38.
 
Finalmente, no pós-pandemia será necessário entender que o mercado de trabalho, que já estava se transformando, vai mudar ainda mais. Muitas pessoas terão que procurar emprego em setores nos quais não estavam acostumadas a trabalhar. Por isso, precisamos voltar ao tema da qualificação profissional, criando mecanismos para impedir que a perda de rendimento dos trabalhadores seja permanente. 
 
Esta agenda precisa se alimentar das experiências mais recentes da literatura brasileira e internacional sobre como fazer programas de qualificação profissional que realmente tenham impacto sobre a empregabilidade.
 
E, para financiá-la, precisamos aprofundar o debate sobre benefícios sociais, trabalhistas e previdenciários que fizeram sentido um dia, e que hoje talvez possam ser revistos.
 
Vinícius Botelho é economista e ex-secretário nacional dos ministérios do Desenvolvimento Social e da Cidadania.