Já bilionário, Elon Musk ainda costumava dormir no chão. A rotina ocorreu durante crises da Tesla, “para garantir que nenhum funcionário achasse que enquanto trabalhava até a exaustão seu líder estava bebendo Mai Tais em alguma ilha.”
A atitude colaborou para que Musk fosse visto como um líder estoico. Houve até quem o comparasse a Sêneca, um dos mais ilustres filósofos dessa escola de pensamento (assim como Musk, supostamente o mais rico cidadão do mundo 2.000 anos atrás).
Musk não está sozinho.
Bill Gates, Warren Buffett e Jeff Bezos demonstram atração pelas ideias do estoicismo, uma escola filosófica da antiga Grécia que prosperou nos tempos do Império Romano – e que tem experimentado um vigoroso renascimento nos dias de hoje, em especial entre empreendedores, principalmente no Vale do Silício.
A mais famosa aceleradora de startups do mundo, a Y Combinator, inclui em sua lista de recomendações de leitura o livro “A Guide to the Good Life: The Ancient Art of Stoic Joy” (Um guia para a boa vida: a antiga arte da alegria estoica, em tradução livre), de William B. Irvine.
Não faltam livros como este. Nos últimos anos houve uma leva de lançamentos de obras com lições dos estoicos, além de diversas reedições dos clássicos. Nos Estados Unidos, a busca pelo termo no Google triplicou desde 2011, atingindo seu ápice no final do ano passado. No Brasil o termo ficou sete vezes mais popular do que era em 2016. Há sites, blogs, até eventos internacionais dedicados ao estilo de vida e à filosofia estoica.
O que leva a três perguntas básicas sobre o estoicismo: do que se trata, por que tem feito sucesso e, finalmente, vale a pena?
O filósofo pioneiro do estoicismo foi Zenão de Cítio (Chipre), três séculos antes de Cristo. Àquela altura, várias escolas disputavam a herança de Sócrates, desde a Academia de Platão e o Liceu de Aristóteles até vertentes como os cínicos, os cirenaicos, os epicuristas (ou hedonistas), os céticos…
Zenão estudou com mestres cínicos, para quem só o conhecimento e a virtude importam; todo o resto é indiferente. Mas ele introduziu uma importante alteração: alguns “indiferentes” são preferíveis a outros. Tudo o mais sendo igual, afirmava, é melhor ser rico que ser pobre; melhor ser saudável que doente; e por aí vai – desde que você jamais sacrifique o conhecimento ou a virtude na busca por esses bens.
O estoicismo é uma filosofia determinista: tudo acontece do único jeito que poderia acontecer, de acordo com o plano de Deus. Num universo assim, cabe-nos aceitar as circunstâncias externas e focar naquilo que está sob nosso controle: nossas próprias ações e as nossas crenças. Como disse Epiteto, um dos principais mestres estoicos: “não são as coisas que nos aborrecem, mas nossas opiniões sobre as coisas”.
Este é, aliás, um dos preceitos básicos da Teoria Cognitiva Comportamental, uma psicoterapia moderna que bebeu na fonte do estoicismo e tem demonstrado bastante eficácia para os problemas contemporâneos.
Não à toa, o estoicismo surgiu num período de crise social, quando as cidades-estado gregas perdiam sua autonomia; e experimentou sua fase de ouro quando a república de Roma caiu, substituída pelo sistema imperial. Em momentos assim, as pessoas percebem um mundo instável, em que tudo muda, e é um conforto recolher-se à esfera de coisas que você pode controlar. Alguma surpresa que uma filosofia como essa tenha um baita eco nos dias de hoje?
Ao lado do mercado
Empreendedores e executivos não costumam ser o tipo de pessoas afeitas a devaneios filosóficos. Mas As Meditações de Marco Aurélio atingem o alvo. Cartas de um Estoico, de Sêneca, também. O Manual de Epiteto, idem.
Começa da própria origem da escola. O estoicismo deve seu nome a um pórtico (Stoa) perto do mercado de Atenas. Nele os primeiros estoicos praticavam seus debates filosóficos caminhando “em meio ao burburinho da vida urbana, e não afastados dela, como nos jardins da Academia de Platão ou no Liceu de Aristóteles”, diz o filósofo americano Peter Adamson, autor do podcast History of Philosophy Without Any Gaps (História da filosofia sem lacunas). Desde seu princípio, portanto, o estoicismo se desenvolveu junto ao mercado.
Seu tema principal é como levar a vida. Isso se presta ao trabalho e a projetos: definir prioridades, administrar equipes, burilar estratégias, antecipar riscos, fortalecer a determinação… Uma das práticas estóicas, por exemplo, é o premeditatio malorum (a antecipação de males), um exercício de imaginar tudo que pode dar errado ou ser tirado de nós.
A ideia é nos prepararmos psicologicamente para os danos – mas serve também para criar planos de contingência e estratégias alternativas.
Mais: “Uma escola de filosofia que conta com a figura do imperador romano Marco Aurélio e outros personagens influentes é uma fonte de inspiração atraente para os gestores,” diz a filósofa Anna Schriefl, pesquisadora da Universidade Humboldt, em Berlim, no site Philonomist.
Se há um monarca, há também um mestre estoico do mais baixo escalão social. Epiteto nasceu como escravo na Frígia (onde hoje fica a Turquia) e foi levado para Roma por seu mestre. Suas lições, divulgadas por um aluno, deram novo ímpeto ao estoicismo – e inspiram alguns bilionários modernos com projetos grandiosos: “O dinheiro não vale nada,” dizia, “mas ganha valor quando nós escolhemos usá-lo corretamente.”
Uma outra característica de grande apelo aos empreendedores é o caráter racionalista do estoicismo. Sua ética parte do pressuposto de que a razão tem total condição de se sobrepor, e mesmo definir, quais emoções permitiremos que aflorem.
Há aí uma disposição muito parecida com o conceito moderno de “resiliência”. Não à toa, fazem sucesso no Vale do Silício práticas como o jejum, banhos gelados e longas caminhadas sem sapatos, para construir resistência ao desconforto físico e mental.
O outro lado da história
Claro, há algo de esquisito na adoção de uma filosofia tão determinista por uma classe que gosta de se imaginar promotora da ruptura.
Mas a pequena contradição não chega a ser um obstáculo. Afinal, ninguém prega abraçar integralmente o estilo de vida estoico – que inclui preceitos não muito bem aceitos hoje em dia, como jamais se apegar a seus filhos porque eles podem morrer (nove dos 14 filhos de Marco Aurélio morreram bebês ou ainda crianças).
Também há uma crítica de que autores modernos tenham simplificado demais a filosofia estoica, pinçando apenas o que se encaixa no ramo da auto-ajuda.
Convém não esquecer, contudo, que a auto-ajuda faz parte da rotina estoica, pelo menos como estabelecida por Epiteto: ele recomendava fazer uma análise sistemática de suas ações, prática que foi seguida por Marco Aurélio.
Outro senão apontado pelos críticos é a hipocrisia: gente rica e poderosa dizendo não dar importância a dinheiro e poder. Mas até isso pode estar ancorado na tradição estoica.
Sêneca, um escritor tão talentoso que há marcas de sua influência na obra de William Shakespeare, teve uma existência para lá de controversa. Perseguiu dinheiro e poder e se envolveu com o regime opressor do imperador Nero.
Foi banido por adultério com uma filha do imperador Claudius e, na volta do exílio, teve um caso com Agripina, a mãe de Nero. Se vivesse hoje, é bem possível que Sêneca fosse cancelado.
Ou, sabe lá, talvez comprasse alguma rede social.