A trajetória da 99 é um dos grandes casos de sucesso do empreendedorismo brasileiro. Mas, em meados de 2016, a startup de mobilidade ficou à beira da falência. 

11129 da39219b a9d3 660c 2fbc 768a491e42f2Em Unicórnio verde-amarelo (337 páginas), lançado esta semana pela Companhia das Letras, o cofundador Paulo Veras conta os bastidores dessa história e de outros momentos que marcaram a trajetória do primeiro unicórnio brasileiro. 

Escrito em parceria com a jornalista Tania Menai — autora de “Contra a maré”, que conta a história do Peixe Urbano — o livro é fruto de um trabalho de mais de dois anos e dezenas de entrevistas (ele de São Paulo, ela de Nova York). O resultado é uma narrativa bem humorada que aborda desde a fundação da empresa em 2012 até sua venda para a chinesa Didi dois anos atrás por US$ 1 bilhão.

Junto com Ariel Lambrecht e Renato Freitas, Veras fundou a 99 depois de criar outras cinco startups e trabalhar anos como diretor da Endeavor. Era, disparado, o mais velho dos três. 

“Eu brincava que o meu papel era ser o adulto responsável, garantir que as crianças não aprontassem demais na casa,” conta no livro. 

O livro pincela três momentos cruciais da trajetória de Veras: a quase falência da empresa; a descoberta de uma leucemia que lhe dava 50% de chance de sobrevivência; e as negociações da venda da 99 para a Didi, na qual ele fez o meio de campo entre os chineses, os outros fundadores e os investidores da 99. 

Veras diz no livro que se sentia “no seriado Game of Thrones, no papel do negociador que procura evitar a batalha na undécima hora, quando ambos os exércitos já estão posicionados. O nosso lado estava armado, querendo briga. O deles também. Eu tentava mudar o rumo dessa história.”

Abaixo, um excerto do livro, que já está no Kindle e cujos exemplares físicos ficam disponíveis a partir de quinta-feira:


“Em maio de 2016 as finanças indicavam que a 99 quebraria em oito meses. Oito. O número estava claro, projetado no telão improvisado em uma sala da empresa. Era preciso reformular urgentemente a estratégia da 99 e seus duzentos funcionários. Naquela reunião, apresentamos um plano minucioso que, se executado com perfeição, daria nova vida à companhia. Demos à equipe, e a nós, exatos 45 dias para pagar as próprias contas e virar o jogo. Não havia plano B.

Na 99, tínhamos uma superstição: anos ímpares eram ótimos, anos pares, catastróficos. Mas 2016 superou as piores expectativas. O plano dos 45 dias começaria imediatamente e se estenderia até julho. Ele adiava a ameaça de fechar a 99 no curto prazo, mas não resolvia o desafio de longo prazo: retomar o crescimento e voltar a competir com nosso arqui-inimigo, a Uber.

Criado na Califórnia em 2010, o aplicativo de carro particular chegou ao Brasil em 2014. Nos primeiros meses, não fez muito barulho. Mas em 2016, a Uber chutou a porta, cobrando trinta por cento a menos que os táxis nas corridas e criando um mercado jamais visto. A empresa cresceu de forma vertiginosa, tirando proveito da ausência de concorrência local e da indefinição das regras do jogo. Para o conglomerado de mobilidade compartilhada chinês Didi Chuxing, com quem discutíamos uma parceria, investir na 99 era apostar no cavalo perdedor. De 2015 para 2016 a nossa liderança evaporou: a participação de mercado da 99 despencou de sessenta para dez por cento, enquanto a Uber abocanhou cerca de 85 por cento no mesmo período. Carro particular era a bola da vez. Em um ano, táxi virou coisa do passado.

Nossa sede ficava na Vila Olímpia, em São Paulo. Ali trabalhavam cerca de 160 pessoas. Contávamos com mais quinze funcionários no Rio de Janeiro e outros vinte espalhados pelo Brasil, em Porto Alegre, Recife e Fortaleza. A reunião aconteceu no terceiro andar do escritório paulistano, que ainda não tinha mobília. As pessoas estavam sentadas no chão, na laje sem carpete, e olhavam para os slides no telão. Acabei sequestrando a reunião. Ninguém esperava a minha presença. Reapareci de surpresa no escritório, depois de ter contraído o vírus H1N1 em fevereiro, doença que evoluiu para uma pneumonia gravíssima e que me deixou em coma induzido por uma semana. Passei o mês de abril no hospital, totalmente desconectado da 99. Debilitado e dez quilos mais magro, sobrevivi. Voltei para casa no final de abril e passei duas semanas em recuperação. Por ter perdido muita musculatura, tive de reaprender a falar, a comer e a andar.

Em meados de maio comecei a me reconectar com a 99. Nesse meio-tempo, o time de liderança se debruçava sobre um plano para salvar a empresa. Estávamos atrás de investimentos fazia quase um ano, mas as dificuldades eram imensas. Algumas negociações com investidores avançaram, mas não deram resultado. Num domingo, enquanto eu me recuperava em casa, Peter Fernandez, responsável pela área de Produtos na 99, me enviou um email dizendo que tinha marcado uma reunião na quarta-feira seguinte para apresentar o plano de recuperação à equipe. Peter contratou a Bain & Company, uma consultoria multinacional de gestão, para ajudar na elaboração do plano. A Bain trouxe uma equipe excepcional. No entanto, como toda consultoria de ponta, o serviço custava uma fortuna. Era muito para uma empresa pequena como a nossa, com caixa sangrando. Nosso combustível estava na reserva.

Ao me enviar a apresentação, Peter se mostrou aberto a mudanças. Ele buscava a minha validação. Na época, nossos investidores eram fundos como a Monashees, a Qualcomm e a Tiger. Eles acreditavam que a única forma de competir com a Uber era lançar uma opção de carro particular no aplicativo da 99. E queriam mostrar aos outros investidores que estávamos preparados para a briga. Abri o arquivo e li os slides. Eram dezenas, bem no estilo das empresas de consultoria. Notei que o plano propunha uma série de iniciativas: “Vamos lançar o carro particular, vamos lançar isso, vamos fazer aquilo”.

Ariel me pediu que revisasse o plano com atenção. Ele estava preocupado com a viabilidade de tantas ideias — e estava certo. Isso vai quebrar a 99, pensei. Em vez de novidades, precisávamos de um plano emergencial, de um paraquedas. Como plano de longo prazo, era ótimo. No entanto, naquele momento, tudo aquilo era o oposto do que deveríamos fazer. Se tomássemos aquele rumo, consumiríamos o restante do caixa disponível antes de colocar de pé as iniciativas.

Reli tudo e liguei para o Peter. Faltavam dois dias para a reunião. “Estamos torrando dinheiro em vez de focar em parar de pé sozinhos”, disse a ele. “Não é hora de inventar novidade ou pensar em crescimento. Primeiro precisamos sobreviver.” Depois de anos de trabalho duro, de desafios e algumas vitórias, vamos colocar tudo a perder? Um filme passou na minha cabeça. Precisávamos equilibrar as contas antes de pensar em futuro. Até porque não haveria futuro para a 99 se o caixa acabasse. Seria game over.”