A Recuperação Judicial, tal como praticada no Brasil, sofre de uma distorção básica que a compromete: ela não é efetiva para solucionar a insolvência de empresas de dono, que correspondem à grande maioria das empresas brasileiras. 

Ao se inspirar na legislação norte-americana para idealizar a Lei de Falências e Recuperação de Empresas (Lei nº 11.101/2005), o legislador brasileiro deixou de observar que a lei — ao se direcionar no sentido de reestruturar corporations, que no Brasil são poucas — não ofereceu tratamento adequado às empresas cujos sócios garantiram o seu endividamento. 

Sabe-se que as propostas de ajustes na ordem vigente costumam suscitar questionamentos sobre as reais intenções de quem propõe e sobre os possíveis efeitos que trarão. Por isso, é necessário realçar os objetivos deste artigo: defender um franco debate sobre a necessidade de revisão da Lei nº 11.101/2005 a fim de aprimorar sua aplicação, e aumentar a recuperação de créditos no âmbito dos processos de insolvência. 

Com esta breve análise queremos, a partir de uma realidade concreta, apontar caminhos que assegurem a correta utilização de um instrumento fundamental para a saúde do capitalismo brasileiro: a Recuperação Judicial.

A falta de dispositivo expresso que permita a reestruturação de dívida de sócios controladores em conjunto com a reestruturação da dívida da empresa controlada tem ocasionado duas situações danosas: a postergação do reconhecimento da crise e da utilização da RJ enquanto ainda há a possibilidade de reestruturar a empresa e manter a operação e a consequente capacidade de pagamento a credores; e a adoção de expedientes fora da Lei por controladores para proteger seu patrimônio pessoal.   

Nos últimos meses, o País tem assistido a casos rumorosos de crises empresariais que têm resultado em pedidos de RJ. Isso levou a uma certa “popularização” do instrumento, cujo conhecimento durante muito tempo esteve restrito aos operadores do Direito. Outra consequência do aumento do número de casos de RJ é deixar evidentes interpretações equivocadas da legislação por parte de algumas das partes envolvidas nesses processos. 

A recuperação judicial é um remédio importante para mitigar as perdas causadas por insolvências. Apesar disso, há uma percepção difundida de que esse remédio seria ineficaz em razão de possíveis fraudes praticadas pelos devedores. Algumas ocorrências, de fato, deram lastro a essa visão. No entanto, é preciso analisar o problema em toda a sua complexidade e, para isso, o primeiro passo é reconhecermos que há defeitos na lei e na jurisprudência que dificultam a moralização do instituto da RJ. Vejamos.

Ao “importar” a reorganização empresarial da prática norte-americana, não se levou em conta que no Brasil há pouquíssimas “corporations”, ou seja, empresas detidas de forma pulverizada, sem controladores definidos. No caso do Brasil, a vasta maioria das empresas têm controle claramente definido, sendo muitas vezes detido por um único sócio ou por poucos integrantes, como é o caso das empresas familiares. Não se trata de mero detalhe, mas sim de um aspecto que torna os processos que ocorrem no Brasil bastante distintos daqueles que ocorrem naquele País.

Por aqui, os controladores são, quase sempre, responsáveis pela concessão de avais e fianças para as empresas controladas, condição sine qua non para a obtenção de crédito. Isso não ocorre nos Estados Unidos, onde a concessão de garantia por acionistas é rara. No Brasil, mesmo que ocorra a reestruturação de dívida via RJ, o controlador e sua família continuam responsáveis por quase a totalidade do endividamento da empresa em razão das garantias pessoais concedidas, ainda que não tenham cometido fraude, incorrido em confusão patrimonial ou praticado atos que, por previsão legal, autorizam a desconsideração da personalidade jurídica.

Com isso, muito embora a regra seja de que apenas o patrimônio da empresa devedora responde pelas suas dívidas, no caso da vasta maioria das empresas brasileiras a separação patrimonial acaba sendo eliminada na prática, de forma que o patrimônio atingido pelas dívidas não é somente o da empresa, mas também o dos sócios garantidores.

A forma atual de aplicação da lei, excluindo os garantidores da reestruturação sem prover uma alternativa para equacionar o passivo, incentiva fraudes das mais variadas, em regra praticadas com o objetivo de proteger o patrimônio pessoal dos garantidores quando se verifica uma situação de crise empresarial.

Vislumbramos três possíveis alternativas para lidar com esta questão: (1) determinar que, uma vez aprovado um plano de RJ, as garantias assegurariam a dívida reestruturada, em substituição à dívida original; (2) restringir a concessão de garantias aos créditos da empresa pelos acionistas controladores; e (3) permitir o ajuizamento da RJ da empresa em conjunto com seus garantidores.

As duas primeiras alternativas provavelmente demandariam alteração na legislação atual, embora alguns especialistas argumentem que uma interpretação teleológica permitiria a aplicação da primeira alternativa, já que a interpretação atual poder ser entendida como incompatível com os objetivos da lei de insolvência. A terceira alternativa, em princípio, não exigiria alteração legislativa, embora existam certas questões que dependeriam de definição pela jurisprudência.

No cenário em que se permita que a empresa se reorganize em conjunto com seu controlador solidariamente responsável, o empresário honesto terá a possibilidade de contribuir para mitigar as perdas geradas pela insolvência, sem que isso signifique sua inabilitação financeira. A solução, inclusive, é possível na legislação norte-americana, mas não foi devidamente absorvida quando da elaboração da lei nacional.

O US Bankruptcy Code, que regula os processos de insolvência nos Estados Unidos, possui previsões específicas para a reestruturação de dívidas de indivíduos que possuem renda (Chapter 13), além de não restringir a utilização do Chapter 11 (equivalente à RJ brasileira) às empresas, permitindo que pessoas físicas – empresárias ou não – reestruturem suas dívidas. A adoção de entendimento semelhante no Brasil teria impactos positivos para a recuperação de créditos pelos credores, na medida em que a reestruturação se mostraria como uma opção viável quando a empresa que atravessa a crise ainda tem condições de superá-la, e voltar a gerar receita capaz de fazer frente às suas dívidas.

O sucesso de uma mudança como essa exigirá a contribuição das várias partes envolvidas nesses processos. Mais do que nunca, o Judiciário e os órgãos competentes terão de ser mais eficientes no combate à fraude, pois a leniência atual também incentiva a má conduta.

É certo que os investidores e credores institucionais podem ter a impressão, à primeira vista, de que a mudança dificultaria a concessão de crédito e levaria ao aumento das taxas de juros. Em reflexão mais aprofundada, contudo, cabe analisar os impactos positivos na recuperação de crédito da implementação de medida que tenha como consequência uma maior assertividade na análise de crédito, e a redução das fraudes empresariais e das “empresas zumbis” – que se mantêm com o único objetivo de proteger temporariamente o patrimônio dos sócios garantidores.

Na conjuntura atual, esta mudança de paradigma poderá contribuir para o saneamento na área de insolvência, cujos resultados, em termos de recuperação de créditos, são substancialmente inferiores aos dos demais países, conforme atestam estudos conduzidos pelo Banco Mundial.

Indiscutível, portanto, que a adoção de medidas para solucionar as questões que dificultam a recuperação de crédito no país é premente e de suma relevância. Nesse sentido, acredita-se que as soluções descritas acima resultar no aumento da eficiência do sistema de reestruturação do país, permitindo uma melhora significativa na recuperação de créditos pelos credores e uma redução nos casos de fraude que degradam a imagem da Recuperação Judicial.

Thomas Benes Felsberg e Victoria Vaccari Villela Boacnin são sócios no Felsberg Advogados.