Nos últimos dias, milhares de pessoas passaram pela Basílica de São Pedro, no Vaticano, para prestar suas últimas homenagens ao Papa Bento XVI, que estava sendo velado. Poucas vezes na história um papa compareceu ao funeral de outro papa.
No filme Os dois Papas, do diretor Fernando Meirelles, os atores Jonathan Pryce (como Papa Francisco) e Anthony Hopkins (como o Papa Bento) encenam uma conversa imaginária de como teria se dado a comunicação da renúncia de Bento ao então cardeal Bergoglio.
No filme, a conversa acontece na capela papal, a Capela Sistina (fielmente recriada em estúdio), com os dois olhando para a criação de Adão, o famoso afresco de Michelangelo.
A Capela Sistina recebe mais de seis milhões de visitantes por ano, que fazem fila para ver as obras de Michelângelo.
No lado esquerdo do disputado corredor que leva à capela estão algumas pequenas salas com obras contemporâneas, em sua grande parte doadas por particulares ao Vaticano.
Na última delas, onde todos passam reto ansiosos por ver O Juízo Final do mestre italiano, está uma obra importantíssima do pintor irlandês Francis Bacon (1909‑1992).
Raphael, Caravaggio, Velázquez – entre tantos outros – produziram famosos retratos papais. Velázquez talvez tenha criado o maior e mais famoso retrato papal, que inspirou diversos pintores, notadamente Bacon.
A imagem mais reconhecível de Bacon é a de um papa gritando – foram mais de 50 pinturas de papas entre as décadas de 40 e 60. No Vaticano está uma das versões da obra intitulada Estudo após o Retrato do Papa Inocêncio X de Velázquez, realizada em 1953 e doada por Gianni Agnelli nos anos 70.
A pintura foi inspirada no retrato que Velázquez fez de um papa poderoso (e, dizem os historiadores, sem escrúpulos) que assumiu ironicamente o nome de Inocêncio. Apesar de ter fascínio pela pintura, Bacon nunca a viu pessoalmente.
O desafio para Velázquez era superar os grandes artistas italianos, como Ticiano. Realizado em 1650, no auge do barroco, o quadro mostra o homem mais poderoso do mundo totalmente à vontade no trono papal, como representante de Deus na terra.
A genialidade de Velázquez é ter atendido seu exigente cliente com uma bela representação, ao mesmo tempo em que transmitiu seu caráter corrupto por trás de tanta pompa. Quando viu a pintura pronta, o Papa exclamou: “troppo vero”. A pintura está exposta no Palazzo Doria Pamphili, a poucos quilômetros do Vaticano.
Voltando ao quadro de Bacon. Assombrado e obcecado pela perfeição da imagem, Bacon procurou reinventar o retrato de Inocêncio X de Velázquez. Nas palavras de Bacon, “a grande arte é sempre uma forma de concentrar, reinventar o que se chama fato, o que sabemos de nossa existência … rasgando os véus que o fato adquire com o tempo. As ideias sempre adquirem véus de aparência, as atitudes que as pessoas adquirem de seu tempo e de tempos anteriores. Artistas realmente bons derrubam esses véus.”
Os papas de Bacon foram objeto de diversos debates, estudos e livros. A interpretação mais óbvia é a da quebra de paradigma.
Até então se retratavam os papas como figuras santas e poderosas. Bacon inseriu uma dose de humanidade, exprimindo uma feição de dor dilacerante ou um grito desesperado. O quadro que está no Vaticano é um dos mais compostos da série realizada.
O atual papa, Francisco, já declarou ser fã de arte contemporânea (em livro e no documentário “Papa Francisco: minha ideia sobre arte”, 2015) tanto que abriu uma nova ala contemporânea em 2021 e autorizou uma exposição do Last Supper, de Andy Warhol, que acabou sendo adiada antes da pandemia. Warhol era um católico praticante e dizia que um dos momentos mais emocionantes de sua vida foi o encontro com o Papa João Paulo II.
Os artistas vão derrubando os véus, mas o Papa continua pop.