Delfim Netto, parafraseando o Barão de Itararé, costuma dizer que as consequências vêm depois. Com a sua graça usual, Delfim faz uso do lugar-comum para destacar os efeitos inesperados de medidas mal pensadas.

A urgência da política frequentemente impõe acordos para avançar nas reformas ou, ao menos, sinalizar que algo está andando e nem tudo é desgoverno e populismo.

Nos anos 1960, técnicos do governo tentaram criar um Banco Central para garantir a boa gestão da política monetária e o controle da inflação. Pouca gente se lembra, mas o BC nasceu com autonomia.

A negociação foi difícil. Deputados federais defendiam a criação de um banco para financiar, com juros subsidiados, a agricultura. Na ânsia de aprovar a lei, os técnicos lembravam que já havia uma instituição pública que cuidava do tema, o Banco do Brasil, e propuseram uma nova redação para garantir recursos adicionais à expansão do crédito agrícola.

Abriu-se a porta do inferno. A interpretação da norma permitiu que o Banco do Brasil expandisse o crédito à larga, devendo ser ressarcido pelo BC. O resultado foi a conta-movimento, o inacreditável mecanismo que, na prática, deu salvo-conduto para expandir descontroladamente o gasto público.

O país assistiu, nas décadas seguintes, à aceleração da inflação em meio à incapacidade do BC de controlar a expansão monetária.

Gustavo Franco relata essa e outras histórias no admirável livro “A Lei e a Moeda”, combinando o rigor do historiador que fez o dever de casa com o conhecimento do economista que sabe das suas consequências.

Era tempo de ditadura e a autonomia do BC, que os burocratas conseguiram aprovar em troca de muitas concessões, teve vida curta, como conta Roberto Campos em “A Lanterna na Popa.”

Nos anos FHC, a história mudou. Gustavo, desta vez como gestor, teve papel fundamental na construção de um BC com práticas e processos que garantiram a boa execução da política monetária. Ninguém mais imagina, por exemplo, nomear empresários, que se beneficiavam de créditos subsidiados, para o Conselho Monetário Nacional, como era comum nos anos 1980.

O modelo de metas de inflação, implementado por Arminio Fraga, foi a pá de cal para relegar os anos de hiperinflação à memória dos mais velhos. A longa construção das regras escritas e não escritas da gestão monetária no governo FHC foi fundamental nessa transição.

O desastre do Governo Dilma serviu para mostrar que não se deve brincar com a política monetária, e o BC recuperou sua autonomia de fato no governo Temer, respaldada pela alta qualidade dos seus dirigentes e corpo técnico. 

Vivemos dias de velhos populismos. A Câmara, para mostrar que a agenda mudou, quer aprovar medidas com impacto na mídia, como a nova versão da autonomia do BC. O texto, porém, contem propostas para agradar a plateia que podem ressuscitar velhos problemas, como o dispositivo para garantir o pleno emprego. Só os EUA têm essa previsão legal, e nem lá ela é levada como se pretende aqui.

Aparentemente, nossos legisladores não conhecem os dilemas da política monetária. Preservar o pleno emprego no curto prazo em troca de maior inflação pode prejudicar o emprego e os salários nos anos seguintes.

A regra de Taylor, adotada na prática pelos Bancos Centrais dos principais países, inclusive no Brasil, ajusta a taxa de juros para garantir a convergência da taxa de inflação à meta fixada pelo governo, minimizando o custo social.

A gestão monetária, deve-se ressaltar, não é fácil. A equipe técnica do BC procura estimar o nível de atividade da economia e da taxa de desemprego neutra, aquela que não acelera a inflação. Seguindo as boas práticas, o Copom analisa as estimativas dos diversos modelos disponíveis para deliberar sobre a condução da política monetária.

Erros são inevitáveis, e o BC vai ajustando a condução da política à medida que novas evidências são obtidas. Em muitos países desenvolvidos, a diretoria do BC pode ser demitida caso erre sistematicamente no ajuste da política monetária e a taxa de inflação fique distante da meta.

Por aqui, no entanto, os órgãos de controle, como MP e TCU, tendem a intervir no mérito das deliberações das agências de estado. Preocupa a aprovação do texto proposto pelo Congresso, com seus múltiplos objetivos para a política monetária. O receio é que, em pouco tempo, haja questionamentos formais sobre as decisões do Copom e pedidos para que a diretoria apresente a regra pela qual se determina a taxa de juros para garantir o controle da inflação e o pleno emprego. A judicialização disfuncional que tem paralisado parte da administração pública pode contaminar o BC.

Aparentemente, alguns membros dos órgãos de controle não sabem a diferença entre gestão pública, em que a discricionariedade é necessária em razão da incerteza inerente, e as perguntas de um concurso público, onde há apenas certo e errado. 

Detalhes específicos do projeto indicam que sequer a autonomia almejada deve ser alcançada. Os mandatos estabelecidos pelo projeto são curtos: apenas quatro anos. Isso significa que, no primeiro ano do segundo mandato, o Presidente da República já terá indicado o Presidente e todos os diretores do BC. Não há suficiente descasamento entre os mandatos do BC e o ciclo político-eleitoral.

Ademais, o projeto prevê a possibilidade de recondução dos diretores e presidente para mais um mandato de quatro anos. Aqueles que desejarem ficar terão a sua autonomia comprometida, pois dependerão dos políticos que indicarão e aprovarão a recondução. Por que não um único mandato de oito anos, sem direito à recondução, com a possibilidade de substituição daqueles que optarem por sair antes?

O projeto também acaba com o status de ministro hoje atribuído ao Presidente do BC, que passa a ficar suscetível aos processos oportunistas abertos em primeira instância. Voltaremos às cenas vexaminosas de dirigente do BC se esgueirando pela escada de incêndio para não ser encontrado pelo oficial de justiça em razão de liminares e ações judiciais despropositadas, típicas apenas do Brasil.

Além disso, não sendo ministro, o Presidente do Banco Central perde a prerrogativa de enviar projetos de lei à Casa Civil. Precisará encontrar alguém que o faça. Pedirá o favor ao Ministro da Economia? Estranha autonomia.

A importância da autonomia formal do Banco Central já está clara na literatura: reduz a volatilidade das expectativas quanto à trajetória futura das variáveis macroeconômicas, diminui o prêmio de risco dos ativos nacionais e aumenta a segurança da sociedade quanto a surpresas inflacionárias.

A formalização da autonomia, se bem implementada, complementa e consolida a credibilidade adquirida ao longo dos anos, conquistada em um longo processo interno de melhoria de gestão e qualificação do corpo técnico.  Episódios de submissão à pressão política, como no Governo Dilma e no período militar, seriam menos prováveis.

Contudo, é preciso que o desenho da lei seja adequado. A ânsia para aprovar o texto não deve pôr em risco as conquistas das últimas décadas. Recentemente aprovou-se a nova lei das agências reguladoras, com diversos dispositivos para blindá-las dos políticos, o que de nada adiantou. O CADE, que também conta com suas prerrogativas e escudos, também passa por degradante ocupação política. 

Oxalá, no caso do Banco Central, Campos Neto não reviva a decepção do avô.

Marcos Lisboa e Marcos Mendes são economistas do Insper.