Há poucas semanas, a capitalização da Eletrobras parecia morta e enterrada. Até o presidente da empresa, Wilson Ferreira, jogou a toalha e renunciou. Ele era, na realidade, o único no governo empenhado na privatização da empresa. A eleição dos presidentes da Câmara e do Senado foi a gota d’água. Não parecia ser agora, com o Centrão e sua agenda no comando, que a coisa iria andar.

A intervenção na Petrobras, a perda de credibilidade juntos aos investidores e a necessidade de encontrar uma solução para a prometida redução nas tarifas de energia aceleraram a publicação da MP 1.031 que, em ato simbólico, foi entregue aos presidentes das casas pelo próprio presidente da República.

O governo foi para o tudo ou nada. Se a MP caducar, a privatização acabou de vez. Se for convertida em lei, vai ser considerada uma jogada de mestre. Qualquer que seja o resultado, o uso de medida provisória é um equívoco e um precedente perigoso.

Quais são os problemas da  MP?

1. Ordem dos fatores:  o Governo está definindo a modelagem antes da autorização de venda, o que é um erro. Numa privatização, a ordem dos fatores altera o produto. O ideal seria recuar completamente e fazer um único pedido ao Congresso: a revogação do trecho do artigo 31, §1•, da Lei 10.848, do governo Lula, que excluiu a Eletrobráse suas subsidiárias do Programa Nacional de Desestatização (PND). 

Era como se fazia no passado: primeiro, inclui-se a estatal no PND, e em seguida o BNDES faz a modelagem da venda. Na forma que está sendo adotada agora, o Governo está entregando ao Congresso uma competência que é do Executivo, e o Legislativo não tem estrutura técnica para isso.

2. Inconstitucionalidade:  A privatização é tema relevante e urgente, sempre, mas a MP pode ter sua constitucionalidade questionada por não cumprir os requisitos formais de relevância e urgência, sempre subjetivos. O tema está em discussão no Congresso desde 2018 e já existia projeto de lei sobre o assunto, que não recebeu a devida atenção do Executivo. Melhor seria negociar emendas no projeto atual. Além disso, se a medida caducar – recebeu 570 emendas – a privatização acaba de vez. Outra proposta não poderá ser enviada tão cedo.

3. Impacto sobre as tarifas:  Ninguém se convenceu que Bolsonaro é um defensor da desestatização. Como sua grande motivação é conseguir uma forma de reduzir tarifas, o Presidente deve ter sido convencido de que só com a capitalização da Eletrobras isso seria possível, e é só por isso que a MP foi enviada ao Congresso.

A MP aumentou o volume de recursos a serem transferidos para a Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), o encargo setorial pago pelas distribuidoras.  Com isso, a MP reduziu estes encargos e compensou subsídios, muitos deles desnecessários, que oneravam as tarifas. Com a nova repartição, metade do valor líquido obtido na capitalização da Eletrobras vai para a União na forma de pagamento de outorgas, e a outra metade, para a CDE. O governo estima R$ 25 bilhões para cada. Todas essas estimativas ainda estão condicionadas à definição do valor adicionado dos novos contratos, a ser calculado pelo CNPE.

4. Precedente perigoso:  Nessa modelagem, mais da metade dos recursos não transita pelo Tesouro, sendo uma forma de não passar pelo Teto de Gastos. E o que é destinado à União vai direto para o resultado primário, sem vinculação ao pagamento de dívida, como no passado. Uma operação deste porte leva alguns meses. Quando o dinheiro chegar, será tarde para influenciar na campanha da reeleição. Bolsonaro não atentou para esse detalhe, ou ainda vem algum truque por aí para antecipar o uso de recursos da capitalização. Como os novos líderes do governo não ligam muito para regras fiscais, elas podem mudar e tudo acontecer — o que seria muito ruim. Mas fica no ar o que realmente motivou o presidente a retomar a privatização da Eletrobras.

5. Contas complexas:  Difícil fazer uma avaliação do fluxo financeiro da operação, pois prazos distintos se aplicam aos diferentes pagamentos e receitas. O Cepel (o centro de estudos da Eletrobras) vai receber sua parte ao longo de quatro anos.  Já os fundos regionais que estão em boa parte sendo criados — transferências para as bacias hidrográficas de Furnas, Chesf e Amazonas — receberão recursos ao longo de 10 anos, totalizando cerca de R$ 10 bilhões. A responsabilidade por essas despesas será da nova Eletrobras.

O resultado da oferta pública entraria 100% no caixa da empresa, mas ela terá que fazer aportes mensais para a CDE ao longo de 30 anos. O restante, 50% do valor da operação, para pagamento das outorgas, seria pago de imediato. Não está também definido o impacto da descontratação, necessária para a mudança para o regime de produtor independente. O art. 5•, §1•, III, apenas estabelece que será feita “de forma gradual e uniforme, no prazo mínimo de três anos e máximo de dez anos”. Assim, não se pode dizer qual será o tamanho da captação necessária para fazer frente às obrigações. O valor total a ser recebido pela União também dependerá da oferta secundária.

Como se vê, é um processo complexo de definição de valores. E as dificuldades não param aí. Também devem ser definidas as condições de extinção das outorgas, da encampação das instalações e das indenizações, assim como a cisão de ativos para separar Itaipu e Eletronuclear, que não serão privatizadas.

6. O papel do BNDES:  O banco está autorizado a começar os estudos. Mesmo que a MP venha a caducar, ele tem 120 dias para terminar o trabalho. É um prazo curto. Tradicionalmente, leva 18 meses, em média. Isso sugere que o banco pode terminar por só carimbar e, assim, dar auras de legitimidade a um processo pré-definido. Ao optar por definir a forma de venda por lei, o Governo não deixou espaço para modificações, porque isto demandaria a aprovação de uma nova lei.

O banco também deve participar da engenharia da cisão que manterá Eletronuclear e Itaipu nas mãos do governo. Haverá injeção de capital na nova empresa? Outro valor a definir. O Ministério das Minas e Energia chegou a anunciar um aporte de R$ 4 bilhões. Não há ainda muita informação sobre a reestruturação da empresa, que é um ajuste prévio à capitalização. O goveno iniciou a negociação com valores pré-definidos de transferências para regiões de interesse dos parlamentares. Diz que é o teto do que pode “entregar” ao Legislativo. Vai descobrir que pode ser o piso e acabar tendo que pagar para privatizar a Eletrobras. Segundo o secretário de Desestatização, caberá ao BNDES apenas o serviço de due diligence. Dá a impressão que Diogo Mac Cord não tem grande familiaridade com o tema.

7. Competição:  A venda da maior empresa de energia da América Latina demandaria um estudo mais profundo. A empresa defende a capitalização para poder manter sua importância no setor. Em 2011, a Eletrobras tinha 34% da geração, hoje tem 30% e, em 2024, terá 24%. Na transmissão, tinha 52%, em 2011, hoje, 45%, e, em 2024, terá 39%. A empresa não investe mais, está minguando. Mesmo assim, mantém uma posição relevante nos segmentos em que atua. Por isso mesmo, era, e é, recomendável uma avaliação do impacto de passar para o setor privado uma empresa com esse poder de mercado.

A privatização não deve ter apenas objetivos fiscais, e os seus benefícios precisam ser explicitados. A venda da Gerasul, hoje Engie, mostra o potencial de uma empresa que sai da gestão pública, sem amarras de compras, crédito e recursos humanos. A Engie era um pedaço da Eletrobras e já chegou a valer mais do que ela. A meta deve incluir também o redesenho do setor aumentando a eficiência da operação. Não é aconselhável simplesmente transferir poder de mercado do setor público para o setor privado, especialmente quando se trata de setor não regulado, como a geração de energia.

A democratização do capital não tem nenhuma relação com a competição no setor de geração — elemento-chave para definição de preços, especialmente quando se espera um crescimento do mercado de consumidores livres. A regulação costuma ser bem amigável quando se trata de uma estatal, mas nada garante que os órgãos de concorrência não criarão exigências uma vez privatizada a empresa. Qualquer proposta deve ter em mente a segurança jurídica e aceitação por parte dos investidores e do mundo político. Não podem ser surpreendidos no ‘day after’ por uma decisão regulatória que os obrigue a se desfazer de ativos. A inclusão de Tucuruí, com mais de 8 GW de potência, merecia uma análise prévia do CADE e BNDES.

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Falta transparência ao processo atual, algo fundamental no programa de privatizações e no serviço público. Não se sabe como foi definida a participação máxima permitida de 10% para cada acionista ou grupo de acionistas, que é objeto da golden share. Ou como se chegou aos preços de energia, que servirão de parâmetro para o cálculo do valor adicionado, base para a definição do que seria o valor que se espera obter. O fato de ser uma empresa de capital aberto e com grande liquidez no mercado acionário não significa que seja simples o estabelecimento de preço mínimo.

Mesmo com todas essas ressalvas ao modelo e ao processo, é importante que esta privatização saia. Agora não há mais como recuar. Se a MP prescrever, a discussão sobre a privatização da Eletrobras se encerra por alguns anos.

Depois desta, que venham muitas outras. A lição da intervenção no Banco do Brasil e na Petrobras é clara. Não há lei, não há governança, não há nada que proteja uma estatal da tentação populista.

Elena Landau é advogada, economista, foi diretora de Privatização do BNDES e é presidente do Conselho Acadêmico do Livres.