A equipe econômica propôs alterar a governança do CARF, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. Trata-se da principal medida do Governo para aumentar a arrecadação e procurar cumprir a meta fiscal.

Para quem não acompanha o cotidiano da gestão de negócios no Brasil, o tema pode soar arcano – mas é extremamente importante.

Existe um imenso contencioso entre o Fisco brasileiro e seus contribuintes, dezenas de vezes o que se observa em outros países, e com valores muito elevados.

Nos últimos anos, criou-se uma controvérsia sobre se uma regra que baliza o julgamento estaria indevidamente favorável aos contribuintes, prejudicando a arrecadação.

O governo fez uma proposta para inverter essa regra, que muitos temem acabe por ser indevidamente favorável ao Fisco.

Esta coluna apresenta uma solução alternativa para garantir a independência e isenção nos julgamentos desses conflitos.
Antes de entrar na proposta, melhor explicar o problema, assim como os dados que mostram a sua relevância.

O CARF é um tribunal administrativo que julga os conflitos entre a Receita Federal e os contribuintes.

As normas tributárias no Brasil são labirínticas, permitindo interpretações diversas, com inúmeros pontos conflitantes, e outros, obscuros.

O resultado é um nível de litígio sem paralelo com outros países. Para se ter uma noção, segundo os dados mais recentes,
o valor em disputa nos órgãos administrativos no Brasil passa de 15% do PIB. Nos demais países da América Latina, esse número não chega a 0,2%. Nos países da OCDE, menos de 0,3%. Trata-se de uma diferença de mais de 50 vezes.

Por vezes, a solução administrativa é questionada pelos contribuintes, o que resulta em um litígio que, incorporando os processos judiciais, chega a 75% do PIB. Esses dados são sistematizados no trabalho Contencioso Tributário no Brasil, disponível aqui.

O Fisco usualmente questiona a interpretação da lei utilizada pelos contribuintes e os autua com multas pesadas, incrementadas por acusações de fraude.

Os contribuintes contra-argumentam que o Fisco muitas vezes usa argumentos que não constam do texto legal para autuá-los, estabelecendo cobranças indevidas. Um exemplo dessa sequência de interpretações criativas encontra-se no trabalho Reforma da Tributação da Folha e Contencioso Previdenciário, de Vanessa Rahal Canado.

Naturalmente, os contribuintes analisam com detalhe as normas para se valer das regras que permitem reduzir o pagamento de tributos. Por outro lado, o governo recorrentemente precisa de recursos adicionais, incentivando o Fisco a aumentar a arrecadação.

A legislação caótica acaba sendo um caldo de cultura para este conflito disfuncional. O Diagnóstico do Contencioso Judicial Tributário Brasileiro analisou cerca de 750 milhões de decisões para identificar diversos determinantes para essa quantidade imensa de litígios, e está disponível aqui.

No âmbito do governo federal, o CARF deveria ser a instância administrativa para dirimir os conflitos. Será que o contribuinte descumpriu alguma norma? Ou será que os auditores fiscais foram além do que a norma prevê para autuar o contribuinte?

Essas perguntas deveriam ser respondidas por um tribunal com independência em relação às partes envolvidas, como ocorre em outras instâncias que arbitram conflitos.

Mas este não é o caso do CARF.

Ele é composto por conselheiros, metade deles indicados pela Receita Federal, metade pelo setor privado. Em caso de empate, até há alguns anos o voto de qualidade – que arbitra a solução do conflito – era do seu presidente, um representante da Fazenda Nacional.

Uma lei aprovada há poucos anos inverteu esse processo. Em caso de empate, a solução passou a ser a favor do contribuinte. A lei aprovada na semana passada, defendida pelo governo, significa voltar à norma antiga. Em caso de empate, vale o que resolverem os representantes do Fisco.

Compreensivelmente, ambas as partes têm restrições a que o outro lado necessariamente seja o vencedor em caso de empate.
Existe, contudo, uma solução alternativa, que não favorece nenhum dos lados e que procura garantir a isenção do julgamento, respeitando a legislação e minimizando os conflitos de interesse.

O Brasil poderia criar um Tribunal Administrativo, com conselheiros independentes indicados pelo Presidente da República, com mandatos de 4 anos e não coincidentes.

Seria vedada a indicação de auditores fiscais, nem haveria mais a indicação por parte das confederações que representam o setor privado. As indicações de conselheiros teriam que ser aprovadas pelo Senado.

Existiria, além disso, o cargo de Tributarista-Chefe, igualmente indicado pela Presidência da República e aprovado pelo Senado, que seria o responsável pelo parecer técnico em cada caso de conflito para ser submetido à análise dos conselheiros.

Esse tribunal estaria formalmente vinculado ao Ministério da Justiça, ainda que com independência funcional.

Trata-se do mesmo modelo já adotado, no Brasil, para temas de defesa da concorrência, cujos conflitos são arbitrados pelo CADE (o Conselho Administrativo da Defesa da Concorrência), um tribunal independente mas formalmente vinculado ao Ministério da Justiça.

A existência de órgãos independentes para julgar o contencioso tributário é prática usual em outros países, como mostra o estudo Contencioso Administrativo Tributário Federal, disponível aqui, que analisa os casos da Alemanha, Argentina, Espanha, Estados Unidos, França, Itália e Portugal.

Disputas entre o Fisco e os contribuintes ocorrem em todos os países, ainda que os dados indiquem que a extensão desse tipo de litígio no Brasil é significativamente maior, resultado de nossas regras complexas e peculiares, bem distantes das melhores práticas.

A mediação de conflitos entre o Fisco e os contribuintes requer um tribunal independente, autônomo e isento, com uma governança que garanta maior segurança de que as suas decisões estarão aderentes à legislação.

Marcos Lisboa é economista.