Em 1989, a novela Vale Tudo capturou o Brasil ao retratar corajosamente uma sociedade em crise ética. Para tanto, o responsável pelo enredo criou duas personagens fortes que dominaram o drama: Maria de Fátima, a jovem ambiciosa e disposta a tudo pela fama, e Odete Roitman, a empresária poderosa que simbolizava com frieza a corrupção das elites.

Ambas chocaram o telespectador traindo a própria mãe, manipulando pessoas, comprando consciências, fraudando negócios – tudo para mostrar a degradação moral do fim dos anos 80.

Passadas mais de três décadas, o remake da TV Globo não está tendo o mesmo impacto: o que antes chocava, hoje parece banal.

Entre uma e outra versão, o Brasil atravessou crises políticas e escândalos sucessivos — o impeachment de Collor, o mensalão, a Lava Jato e, consequentemente, uma enorme erosão da confiança da sociedade nas instituições. Neste percurso, a fronteira entre o aceitável e o inaceitável foi empurrada.

O comportamento, na época inescrupuloso, de Maria de Fátima tornou-se para muitos jovens e influenciadores digitais de hoje quase um roteiro de ascensão: visibilidade a qualquer custo.

Redes sociais e reality shows amplificaram o “vale tudo” para conquistar likes, contratos publicitários ou simples notoriedade. Ostentação vazia, relações interesseiras, mentira como estratégia e ambição sem freios migraram da ficção para o feed, onde são consumidas e replicadas diariamente. “Corra atrás de seu sonho, não desista nunca” virou um mantra contemporâneo e para chegar ao sonho, “vale tudo”. Inclusive trair a mãe…

No meio empresarial, o perfil de Odete Roitman — implacável, cínica e indiferente à ética — deixou de causar repulsa. Em alguns círculos passou a ser admirado e até premiado. Negócios fechados com favorecimentos, estratégias que priorizam ser um ‘winner’ (expressão da moda nestes ambientes) ou ignoram valores éticos passaram a ser premiados. 

A Odete de 1989 virou, para muitos, o arquétipo do “executivo de sucesso” do Brasil de hoje.

Na política, o fenômeno não é diferente.

Se em 1989 a novela apontava, de forma indireta, para as conexões espúrias entre as elites econômicas e o Poder Público, hoje vemos parlamentares e líderes políticos eleitos quase exclusivamente pelo poder das redes sociais — muitas vezes sem trajetória de serviço público ou compromisso com políticas concretas.

A “lacração” e a polarização substituíram o debate. Antes havia projetos de País.  Hoje há “projetos de poder.”

Os limites do público e do privado se confundem. É a Maria de Fátima com perfil no Instagram e a Odete Roitman vestindo terno e gravata.

Há um aspecto, porém, que transcende as tramas de novela e as conjunturas políticas: a forma como nos colocamos no espaço público. Dignidade, humildade, consideração pelos outros e capacidade de dialogar com elegância não são adereços — são parte essencial da liderança. 

O poder, quando perde a compostura, perde também a autoridade moral. Num mundo saturado de exibicionismo e grosserias, a verdadeira sofisticação deveria estar em qualidades como saber ouvir, respeitar e construir pontes.

As reações ao remake de Vale Tudo sugerem que naturalizamos o que antes denunciávamos. A novela, antes crítica, se tornou crônica. Mostra que a pergunta que atravessava a trama — “Vale tudo mesmo?” — deixou de ser retórica e passou a ser resposta.

O que fazer diante disso? Talvez o primeiro passo seja reconhecer que a erosão ética não é um fenômeno inevitável, mas fruto de escolhas, incentivos e omissões. O segundo é resgatar, na vida pública e privada, a ideia de que não basta chegar ao topo — é preciso importar-se com o caminho que se percorre para chegar lá.

Sem isso, corremos o risco de viver eternamente a repetição do último capítulo de Vale Tudo.

Andrea Matarazzo foi ministro-chefe da Secretaria de Comunicação no Governo Fernando Henrique Cardoso e embaixador do Brasil na Itália.