A criatividade com as normas legais e os números do orçamento público não param de surpreender.

Em outro artigo, publicado neste Brazil Journal, descrevemos as inconsistências de diversas estimativas de arrecadação anunciadas pelo próprio governo, de modo geral excessivamente otimistas. Também alertamos que boa parte é de receitas não-recorrentes, que ajudam no resultado primário de um ano mas não reequilibram as contas em definitivo, tendo impacto marginal na estabilização da dívida, que é o que de fato importa.

Com o fim do Teto dos Gastos, voltou a valer a norma constitucional que vincula os gastos com saúde e educação à receita do mesmo ano. Mas não é bem assim. A criatividade imperou e a norma constitucional vale, mas não agora, só a partir de 2024. Foi irrelevante apontar que essa criatividade não tem amparo no texto legal.

Os R$ 60 bilhões previstos para o Fundo de Desenvolvimento Regional, criado pela reforma tributária, não preocupam o Ministro da Fazenda, que considera ser “um valor pequeno por ano, em um orçamento de R$ 2 trilhões.”  Todavia, R$ 1,8 trilhão estão comprometidos com despesas obrigatórias como salários e previdência, restando cerca de R$ 200 bilhões para as despesas discricionárias.

Quando o Fundo de Desenvolvimento Regional atingir seu valor máximo, metade das despesas discricionárias estarão comprometidas com este Fundo e emendas parlamentares.

A criatividade contábil chegou à Constituição: lá foi escrito que um saldo contábil do PIS/PASEP, a ser transferido ao governo, deveria ser considerado, na contabilidade do Tesouro, como receita primária.

O Banco Central fez valer a sua autonomia técnica e manteve-se fiel aos manuais de estatística, registrando o evento como um ajuste patrimonial, sem afetar o resultado primário.

Continuam as tratativas para considerar parte da despesa de precatórios como gasto financeiro, sem impacto primário, mais uma vez desrespeitando o padrão contábil internacional.

A mais recente criatividade teve como vítima o Arcabouço Fiscal. Aprovada há poucos meses, a Lei Complementar 200/23, que o estabeleceu, não deve ser lida como está escrita, segundo interpretação recente do Ministério da Fazenda.

Como iremos detalhar mais à frente, a legislação do Arcabouço estabeleceu um mínimo de crescimento para a despesa primária orçada. Caso, contudo, haja frustração da receita, o governo deve restringir os gastos, realizando-os abaixo do total orçado, para buscar a meta de resultado primário, como obriga a Lei de Responsabilidade Fiscal.

A nova interpretação, que está sendo veiculada pelo Ministério da Fazenda, é de que a lei do Arcabouço estabeleceria um piso para o crescimento real do gasto de 0,6% ao ano, e este crescimento teria precedência sobre a meta de resultado primário. Se não houver receita suficiente para o objetivo fiscal, o gasto deve crescer da mesma forma.

O descumprimento da meta de resultado primário que decorreria dessa nova interpretação   não implicaria infração à Lei de Responsabilidade Fiscal, e, portanto, não seria base para um processo por crime de responsabilidade ou crime contra as finanças públicas.

Entretanto, como detalhamos a seguir, o texto da legislação estabelece algo bem diferente da criativa interpretação do Ministério. Desde a Lei de Responsabilidade Fiscal, o governo deve buscar atingir a meta de primário, restringindo a despesa em caso de frustração da receita. O jargão denomina essa limitação de “contingenciamento”. É isso que está dito no art. 9º da LRF, que continua em vigor:

Art. 9º Se verificado, ao final de um bimestre, que a realização da receita poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais, os Poderes e o Ministério Público promoverão, por ato próprio e nos montantes necessários, nos trinta dias subsequentes, limitação de empenho e movimentação financeira, segundo os critérios fixados pela lei de diretrizes orçamentárias.
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(grifo nosso)

 “Limitação de empenho e movimentação financeira” é o nome técnico dado ao contingenciamento. Pelo dispositivo citado, se houver risco de descumprimento da meta de resultado primário, é obrigação do gestor público executar a despesa abaixo do valor orçado, contingenciando despesas.

Em adição às metas de resultado primário, o Arcabouço fiscal estabeleceu uma segunda regra. O  art 3º da LC 200 fixa limites para a despesa total orçada em cada ano:

Art. 3º Com fundamento no inciso VIII do caput do art. 163, no art. 164-A e nos §§ 2º e 12 do art. 165 da Constituição Federal, ficam estabelecidos, para cada exercício a partir de 2024, observado o disposto nos arts. 4º, 5º e 9º desta Lei Complementar, limites individualizados para o montante global das dotações orçamentárias relativas a despesas primárias:
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(grifo nosso)

Além disso, estipula, no seu art. 5º, que esse limite máximo para as dotações orçamentárias deve crescer, em termos reais, a cada ano, entre 0,6% e 2,5%.

As duas regras – limite à despesa orçada e meta de primário – funcionam com base em conceitos distintos de despesa. A regra de limitação da despesa, contida no art. 3º, acima citado, refere-se ao montante máximo de despesa que pode ser aprovada no orçamento anual. Já o resultado primário mede a receita e a despesa efetivamente realizadas, quanto entrou e quanto saiu do caixa do Tesouro. Portanto, a despesa considerada no cômputo do resultado primário é a “despesa realizada”.

A despesa realizada pode ser menor que a dotação orçamentária. Basta que haja contingenciamento de parte da despesa orçada para garantir o atingimento da meta de resultado primário.

Como temos duas regras na LC 200, sem qualquer precedência de uma sobre a outra, o montante da despesa a ser realizada está subordinado à meta de resultado primário. Caso a receita não seja suficiente para a meta fiscal, limita-se o gasto, como estabelece a Lei de Responsabilidade Fiscal. Isso continua em vigor e deve ser cumprido.

Em contraposição a esta realidade, a nova interpretação veiculada pelo Ministério da Fazenda é construída com base nos seguintes pressupostos, que não têm suporte na legislação:

1- O conceito de “despesa orçada” equivaleria ao de “despesa realizada”;
2- O crescimento real anual de 0,6% da “despesa orçada” passaria a ser considerado um piso para a “despesa realizada”;
3- Aumentar a despesa para cumprir esse suposto limite mínimo de gastos teria precedência sobre a obrigação de cumprir a meta de resultado primário.

Entretanto, não é isso que está escrito na lei. Para que não reste dúvida quanto à inexistência de uma obrigação de crescimento de “despesa realizada”, vale citar o dispositivo da LC 200 onde se estabelece o valor mínimo de 0,6%:

Art. 5º A variação real dos limites de despesa primária de que trata o art. 3º desta Lei Complementar será cumulativa e ficará limitada, em relação à variação real da receita primária, apurada na forma do § 2º deste artigo, às seguintes proporções:
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1º O crescimento real dos limites da despesa primária, nos casos previstos nos incisos I e II do caput deste artigo, não será inferior a 0,6% a.a. (seis décimos por cento ao ano) nem superior a 2,5% a.a. (dois inteiros e cinco décimos por cento ao ano).
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(grifo nosso)

Note-se que o dispositivo citado se refere ao “limite de que trata o art. 3º”, que estabelece restrição para as “dotações orçamentárias” e não para a “despesa realizada”. Logo, não há valor mínimo obrigatório para a despesa a ser realizada em cada ano.

Redação de leis nunca conseguem blindar totalmente as regras que se pretende impor. Quando há interesse em não cumprir o que foi prometido e contratado com a sociedade, pode-se buscar um detalhe de redação para amparar uma interpretação criativa.

Por exemplo, o § 1º do art. 5º, acima citado, fala em “limite da despesa primária” não mais acrescentando o termo “de que trata o art. 3º”. Pode-se, então, construir o argumento de que o § 1º está lidando com outra definição, distinta daquela usada no caput do mesmo artigo, e que estaria agora se referindo à despesa realizada, e não mais ao limite para a despesa orçada.

Essa interpretação, contudo, atropela a lógica da redação legal.

Já foi apresentada, pelo Líder do Governo no Congresso, uma emenda à LDO para vedar o crescimento da despesa realizada abaixo de 0,6% reais ao ano. A emenda tenta legitimar a nova interpretação criativa do Arcabouço, ao propor a seguinte redação:

Em consonância com o disposto no art. 5º, § 1º , da Lei Complementar n. 200, de 30 de agosto de 2023, e nos termos do § 2º do art. 9º da Lei Complementar n. 101, de 2000 – Lei de Responsabilidade Fiscal, o montante máximo de limitação de empenho e de movimentação financeira deverá assegurar crescimento real de 0,6% a.a. (seis décimos por cento ao ano) da despesa primária para o exercício de 2024, calculados com base nos limites de que trata o art. 3º da Lei Complementar n. 200, de 2023, não cabendo a adoção, para os fins do disposto no art. 7º , inciso I, da referida Lei Complementar n. 200, de 2023, de medidas de limitação de empenho e pagamento de despesas acima do que dispõe esta Lei de Diretrizes Orçamentárias.
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(grifo nosso)

Note-se que o trecho inicial do dispositivo tenta impor a ideia de que a LC 200 e a LRF estão em consonância ao assegurar um crescimento mínimo obrigatório da despesa. Exatamente a tese frágil que o governo tenta emplacar. Para fazê-lo, tenta-se alterar o conteúdo de duas leis complementares (LRF e Arcabouço), por meio de uma lei ordinária (LDO). Mais uma distorção que surge no esforço criativo.

O principal benefício de qualquer regra fiscal é estabilizar as expectativas sobre a trajetória de longo prazo da dívida pública. Mudar interpretações ao sabor das conveniências, ainda que possa parecer esperta estratégia política para garantir algum ajuste fiscal, frente ao risco de outras opções de enfraquecimento mais drástico no arcabouço, têm como resultado a perda de credibilidade da regra.

Em um raciocínio de curto prazo, pode-se dizer que a nova interpretação levará ao descumprimento da meta de resultado primário que, por sua vez, acionará gatilhos que conterão a despesa a partir de 2025. Contudo, fica a dúvida se quando o limite chegar, novas interpretações, ou mesmo mudanças de meta ou da legislação, não serão acionadas.

”Dá-me castidade e continência, mas não agora,” como escreveu Santo Agostinho.

Marcos Lisboa e Marcos Mendes são economistas.