Américo Pisca-Pisca era um personagem de Monteiro Lobato que via defeito em tudo e queria sempre fazer as coisas de um jeito diferente. Boa parte da comunidade jurídica brasileira se assemelha a ele quando o tema é a reforma tributária.

Outra parte da mesma comunidade age como vaca de presépio, tratando a reforma trazida pela PEC 45 como um dogma de fé, insuscetível a qualquer questionamento.

Como costuma acontecer, a verdade não está nos extremos.

Naturalmente que a adoção do modelo de imposto sobre valor agregado é uma boa notícia. Trata-se de uma sistemática adotada em quase 200 países e que funciona muito bem – melhor não querer reinventar a roda. Portanto, é positiva a aprovação na Câmara de uma reforma que viabiliza a adoção de um sistema tributário mais eficiente, transparente e justo a partir de um IVA Dual: por meio de um imposto devido a estados e municípios, o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), e uma Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), devida à União.

A partir das novas diretrizes constitucionais, o País poderá desatar os nós do nosso complexo sistema tributário atual e reduzir a absurda quantidade de leis tributárias, unificar alíquotas e promover um sistema de amplo creditamento.

Também merece elogio a sensibilidade do legislador ao superar o mito da alíquota única e garantir a tributação reduzida (em 60%) para setores estratégicos, como educação, saúde, transportes etc. A previsão de faixas distintas facilita a transição para o novo sistema e garante as especificidades de setores essenciais da economia.

A prática é comum na tributação internacional. Enquanto o Brasil criou 3 faixas de alíquota (100%, 40% e 0%), as maiores economias do mundo que adotam o IVA preveem modelos semelhantes. A Alemanha também tem 3 faixas de tributação. Suíça, Reino Unido e Noruega têm 4 faixas, enquanto a Itália e a França, 5.

Por outro lado, parece inevitável discutir o critério da eleição de prioridades para a aplicação da alíquota reduzida. Será razoável que produções cinematográficas sejam beneficiadas, e o transporte aéreo – em um País de dimensões continentais – não? Será justo que atividades esportivas, como um campeonato de golfe, tenham tributação inferior à de insumos essenciais como energia ou telecom? Esse é o desenho de hoje.

Muitas dessas incongruências certamente se deram em razão do atropelo com que se deu a aprovação da PEC. Não custa lembrar que o texto votado, em terceiro substitutivo, só veio a ser conhecido minutos antes da votação pelo Plenário da Câmara.

Ainda pior, no curso da sessão plenária, ele veio a ser substituído por uma Emenda Aglutinativa que trouxe diversos jabutis, sem que houvesse tempo adequado para apreciação pelos congressistas das mudanças no projeto anteriormente analisado.

Dentre as alterações promovidas quase na calada da noite (literalmente), destaca-se, negativamente, aquela que instituiu uma nova contribuição estadual sobre produtos primários e semielaborados. A criação dessa nova espécie tributária agride os objetivos de simplificação e neutralidade prometidos pela reforma.

Preocupa também a total falta de transparência da Receita Federal durante todo o debate, omitindo os cálculos e simulações que permitiriam estimar qual seria a alíquota adequada para uma reforma tributária neutra. E essa é a principal dúvida do contribuinte, que anseia saber quanto irá pagar.

A expectativa original, de uma alíquota de 25% – em que 9% seriam devidos à União e 16% aos estados e municípios – já foi majorada quando a União, ao apresentar o PL 3.887/20, que regulamentaria a CBS, manifestou desejar uma alíquota de 12% para si.

Com isso, espera-se que a alíquota da CBS+IBS chegue a, pelo menos, 28%.

Muito provavelmente teremos o maior IVA do mundo, superando o dos países escandinavos, que é de 25%, e mesmo o da Hungria, de 27%. Mas pouca gente parece preocupada com isso.

Causa também apreensão que aspectos importantes tenham sido empurrados com a barriga, transferidos para a Lei Complementar. Existem nada menos que 57 menções à Lei Complementar na PEC, sendo que a ela caberá, além de definir as regras gerais do IVA, também dispor sobre os regimes diferenciados, os requerimentos para compensação e restituição dos tributos acumulados, todas hipóteses de incidência do imposto seletivo, assim como a forma de representação e funcionamento do Conselho Federativo, que será responsável, inclusive, pela gestão dos créditos tributários.

Tudo isso gera insegurança jurídica – justificada pelo histórico do sistema tributário nacional e a sanha arrecadatória do Estado. Afinal, o cachorro mordido por cobra está plenamente justificado em ter medo de linguiça.

No mais, há dúvidas sobre a execução do modelo de IVA dual (um tributo para a União, outro para estados e municípios). Ao mesmo tempo em que a PEC prevê esses tributos como irmãos siameses, dispõe também a regulamentação deles por leis distintas. Ora, se as bases de incidência devem ser iguais, por que duas leis diferentes, uma de iniciativa do Conselho Federativo, outra da União?

Lamenta-se, por fim, que a PEC tenha deixado passar a oportunidade de endereçar a questão dos créditos acumulados de PIS/COFINS, limitando-se a tratar do ICMS acumulado ao prever uma compensação no longo prazo de 20 anos. O texto ainda deixa em aberto o risco de novo acúmulo de créditos de exportação ao não estabelecer, desde logo, o prazo para sua devolução. Ao se implementar o novo sistema, seria mais que recomendável resolver essas questões.

Certamente esses pontos ainda nebulosos serão endereçados com serenidade no Senado. A reforma é bem-vinda, mas tenhamos em mente a conhecida advertência feita por John Marshall, juiz da Suprema Corte americana: “the power to tax involves the power to destroy.”

Luiz Gustavo Bichara e Bruno Toledo Checchia são sócios do Bichara Advogados.