Passando uma temporada em Miami em 2017, conheci uma faxineira chamada Guadalupe, uma imigrante ilegal de El Salvador recém chegada aos Estados Unidos. Guadalupe me contou que atravessou para a Guatemala num ônibus clandestino e depois cruzou para o México escondida num trem.

Ali, usando todas as suas economias e mais um dinheiro emprestado, pagou um coiote que a guiou por dias pelo deserto até chegar aos Estados Unidos. O que faz uma pessoa passar por tudo isso para mudar de vida? — perguntei a ela — achando que a resposta seria a crise econômica e a falta de oportunidades. 

Mas Guadalupe disse que adorava seu país, e que o único motivo por trás de sua decisão foi “a violência, muita violência.”

Seu bairro estava inteiramente dominado pelas “pandillas” e sua vida lá era terrível, submetida à barbárie e atrocidades diárias destas gangues violentíssimas que controlavam a região onde morava, abandonada pelo estado. Havia ainda a disputa de território entre as gangues, com confrontos sangrentos.

Qualquer semelhança com o Brasil, em especial o Rio, não é mera coincidência. É a nossa América Latina.

Guadalupe dizia que a situação perdurava há décadas, que não havia perspectiva de melhora, e que a emigração — juntando-se à diáspora de 2,4 milhões de salvadorenhos vivendo nos EUA — foi a única saída para uma vida livre da barbárie.

Naquele momento El Salvador era o país mais violento do mundo: as gangues controlavam 80% do território, criavam suas próprias leis, tinham promotores e juízes como cúmplices, achacavam negócios e cidadãos, cerceavam o ir e vir das pessoas, torturavam e assassinavam em massa.

Àquela época eu achava que o Brasil – ainda que vivesse uma situação comparável – por sua dimensão, relevância e grau de institucionalidade ainda poderia lutar contra a criminalidade e violência altíssimas, mas a pobre El Salvador parecia mesmo condenada a essa chaga latino-americana.

Ledo engano.

Hoje El Salvador é um dos lugares mais seguros do mundo, sua taxa de homicídios caiu de um perturbador recorde de 106 por 100 mil habitantes/ano em 2015 para 1,9 em 2024. Para o ano corrente, a projeção é que seja menor que 1. Para comparar, o pacatíssimo Canadá tem taxa de 1,2, e os Estados Unidos (pobre Guadalupe!) tem taxa de 6. 

Já o Brasil tem o vergonhoso título de campeão mundial de homicídios, com 46.328 casos em 2023, o que se traduz numa taxa de 22,8. De cada 10 homicídios no mundo, um ocorre aqui, sendo que temos apenas 3% da população mundial.

Inegavelmente, há um experimento relevante em curso em El Salvador desde que Nagib Bukele ascendeu ao poder, em 2019. Trata-se da mais feroz e bem sucedida investida contra as gangues de narcotráfico, com resultados inimagináveis até então, e que o tornou o líder mais bem avaliado do planeta – ainda que ao alto custo da supressão de garantias fundamentais do estado democrático de direito.

Por mais que eu discorde de seus métodos, seria um erro ignorá-lo.

Bukele iniciou seu mandato com a velha e fracassada tática de negociar uma trégua na violência com os pandilleros, o que culminou numa grande matanza de inocentes pelas gangues num fim de semana. Foi aí que Bukele deu uma guinada.

Na carona da comoção causada por este trágico episódio, em março de 2022 Bukele aprovou no Parlamento a decretação de um polêmico estado de exceção por um mês (de lá para cá, renovado 34 vezes).

O decreto suspendeu algumas garantias constitucionais, facultou as detenções sem ordem judicial, suprimiu o habeas corpus, o direito de ser informado sobre o motivo da detenção e de contar com um advogado desde este momento – garantias fundamentais do estado democrático de direito.

Bukele também restringiu grandes aglomerações e protestos sem autorização e aumentou as penas de prisão para crimes relacionados às gangues, incluindo adolescentes acusados de crimes graves que podem ser condenados a até 20 anos de cadeia. Por fim, autorizou julgamentos coletivos dos membros das gangues.

Estas medidas, conjugadas a uma ação policial de ocupação do território, com suporte dos militares e uso de tecnologia, permitiu a prisão de 83 mil pessoas até o momento, incluindo a virtual totalidade dos membros das gangues, que por décadas aterrorizaram a população salvadorenha. As gangues sumiram, a violência cessou, as pessoas voltaram às ruas dia e noite, e os territórios estão livres. 

Com tantos presos, um dos ícones da gestão Bukele foi a construção do Centro de Confinamento do Terrorismo (CECOT), projetado para 40 mil detentos e considerado a maior prisão da América Latina, a 75 km da capital, San Salvador. A prisão possui tecnologia de vigilância avançada, condições extremamente rígidas para os detentos e visitas físicas proibidas, incluindo de familiares e advogados. As únicas interações são por videoconferência.

É inegável que há excessos: 8 mil presos já foram libertados depois que investigações concluíram que eram inocentes.

El Salvador tem 6,3 milhões de habitantes, é um país pobre, altamente desigual, marcado por décadas de violência brutal e, salvo a notável diferença de tamanho, tem características semelhantes à nossa criminalidade, especialmente a do Rio, que se espalha pelo Brasil como metástase.

Bukele mostrou o que é possível fazer quando se tomam medidas extremas no combate à criminalidade, sobrepondo o direito à segurança do cidadão a outras liberdades individuais caras à democracia. 

Será que as conquistas serão mantidas quando — e se — El Salvador abandonar o regime de exceção ou sair do domínio autocrático de Bukele? Seria possível uma transição gradual para a normalidade do estado democrático de direito com plenos direitos civis mantendo a criminalidade em patamares civilizados? O experimento ainda não responde a estas perguntas.

Um antigo chavão da política diz que qualquer experimento radical é melhor no país dos outros. 

As ações de Bukele são fortemente criticadas por organizações de direitos humanos, que denunciaram casos de excesso policial, detenções arbitrárias, a falta de direito de defesa, agressões e mortes sob a custódia do Estado. Bukele responde: “Alguns dizem que prendi milhares, mas na realidade libertei milhões.”

Inebriado por uma enorme popularidade ao libertar o País das gangues, e com até 90% de aprovação, Bukele sucumbiu a outra chaga latino-americana: o autoritarismo. Fez uma manobra para burlar a vedação constitucional a um segundo mandato e se reelegeu, com avassaladores 83% dos votos. 

No segundo mandato, após o fim da violência, seu governo voltou os esforços para desenvolver a frágil economia do país, onde um quarto do PIB é fruto de remessas de dinheiro da diáspora salvadorenha.

Há um grande investimento em infraestrutura com a construção de um novo aeroporto, estradas e uma segunda “cidade do surfe”. Novos edifícios surgem a todo momento, e até o Google abriu um escritório lá ano passado.

Os níveis de criminalidade e violência estão tão grandes na América Latina que a maior parte da população já aceita fazer um sacrifício de prerrogativas individuais por um bem público considerado maior e ao qual muitos jamais tiveram acesso: a segurança.

Não sou eu quem está dizendo. Numa pesquisa realizada pelo Latinobarômetro em 2024 em 17 países da região, 52% dos latinoamericanos disseram não se incomodar com um governo autocrático, desde que ele “resolvesse os problemas do país”. Entre as classes mais abastadas, essa proporção atinge 61%. É um sinal preocupante do desespero da sociedade e da falta de soluções por parte da classe política.

Os brasileiros, que nos acostumamos a viver na barbárie, abaixo de qualquer linha de civilidade e respeito à vida, deveríamos aprender alguma coisa com El Salvador?

Pela primeira vez numa pesquisa Quaest, realizada há poucos dias, a violência foi citada como o principal problema do Brasil por 26% dos entrevistados, superando a economia — que em tempos de dólar a R$ 6, inflação e juros nas alturas foi mencionada por 21% dos entrevistados. Uma pesquisa Datafolha de 2012 apontou que 81% dos brasileiros têm medo de ser assassinados.

Manter alguém preso sem julgamento, como faz Bukele, certamente causa repulsa e indignação a um democrata convicto. No entanto, esta já é a realidade de quase um terço da população carcerária brasileira que está em prisão preventiva e ainda sem julgamento. 

Essa violação de direitos — que não é a única por aqui — já cometemos em escala, mas sem os resultados de contenção da criminalidade obtidos por Bukele. 

Ainda presenciamos bandidos presos pela polícia com dezenas de passagens pelas portas giratórias da Justiça até cometerem crimes maiores, assassinos confessos liberados em audiências de custódia, e bandidos portando armas de guerra (fuzis e granadas) tratados como quem porta um canivete.

A justiça penal é um problema brasileiro gravíssimo, mas nossos problemas da segurança pública vão muito além. 

Empreendi no setor de tecnologia por toda a minha vida, e há quase 10 anos tenho dedicado tempo e energia num trabalho voluntário de (tentar) ajudar o Estado a encontrar soluções para a segurança pública.

Comecei minha peregrinação pela delegacia da esquina, literalmente. Depois fui ao batalhão da PM, ao batalhão central, às áreas de tecnologia da Polícia Militar e Polícia Civil, aos chefes de Polícia, à secretaria de segurança pública, aos jornalistas que cobrem o setor, aos policiais que estiveram à frente de iniciativas modernizadoras na corporação, aos ex-comandantes que deixaram legados relevantes e às ONGs que atuam no setor. 

Meu diagnóstico é desalentador.

Descobri que quando o tema é segurança pública, o Estado brasileiro é tão disfuncional que não consegue sequer ter um diagnóstico, muito menos um plano estruturado de longo prazo e nem a capacidade de receber ajuda. Como constatou Nelson Rodrigues, “subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos.”

Nenhum mandatário, de esquerda ou direita, entendeu que o governo federal é o único protagonista possível para uma virada no problema que mais aflige o brasileiro. Será que sabem o “prêmio de popularidade” que existe para quem resolvê-lo? 

Nos anos 90 o maior inimigo do Estado era outro: a hiperinflação de décadas. Também éramos campeões mundiais neste tema. Fernando Henrique Cardoso fez um esforço monumental para enfrentá-la. Teve coragem, ousadia e atraiu as melhores pessoas que, com competência, energia e persistência debelaram a inflação com o Plano Real e mudaram o Brasil para sempre. 

O prêmio de popularidade foi imediato e duradouro: FHC foi o único presidente eleito no primeiro turno após a redemocratização. E por duas vezes.

Nossos governantes precisam sair da eterna inação e enfrentar com coragem o problema — assim como fizemos com a inflação, criando o Plano Real, e com a saúde, criando o SUS.

Nossa “Constituição cidadã” de 1988 trouxe grandes conquistas para a sociedade, mas foi escrita com um compreensível viés garantista depois de 20 anos de ditadura. É curta e vaga quando o assunto é segurança pública, afastando o cidadão deste direito essencial.

O texto constitucional diz que a responsabilidade é “do Estado”, mas cria um jogo de empurra de competências entre os três níveis de governo – além do que já existe entre os três Poderes da federação – e um consequente vácuo de responsabilidade sobre o que é hoje o maior problema do Brasil.

O experimento de El Salvador, ainda que condenável em sua essência e com consequências imprevisíveis, deveria ao menos nos fazer refletir e agir com a urgência que o tema merece. 

A mensagem é clara: existe solução para a criminalidade e a violência mesmo nos níveis que atingimos – algo que se pensava ser absolutamente impossível – e há um retorno político brutal para quem alcançar esse feito.

Há inúmeras oportunidades de ação calcadas em políticas públicas baseadas em evidências que poderiam nos beneficiar já. E sem termos que abrir mão de liberdades individuais (que lutamos para reconquistar no passado recente) em prol da segurança.

Com a campanha de 2026 já no horizonte – na qual a segurança pública certamente será o grande tema – talvez a classe política perceba a oportunidade.  

Com um plano concreto de longo prazo, que jamais tivemos, e uma ação enérgica e persistente (em vez de clichês e demagogia) podemos sim transformar a realidade da segurança pública e ainda elevar quem o fizer ao posto de líder mais bem avaliado do mundo. Quem se habilita?

Guilherme Pacheco é empreendedor e investidor em tecnologia. Foi co-fundador do Bondfaro, Mosaico, Gazeus, ParceleX e da Tessera Ventures.