Nota do editor: Alerta de artigo longo mas relevante para os formuladores de políticas públicas no Brasil de hoje.

‘Destruição criativa’ foi o termo criado pelo economista austríaco Joseph Schumpeter para descrever o processo de inovação descentralizado em uma economia de mercado. Para conquistar clientes e aumentar sua lucratividade, as empresas buscam descobrir novas técnicas de produção, novas formas de gestão ou novos produtos.

A grande maioria fracassa, muitas vezes indo à falência. Algumas poucas são bem-sucedidas e conseguem métodos de produção mais eficientes, ou descobrem novos produtos, resultando em ganhos extraordinários para seus empreendedores.

Com o tempo, os casos bem-sucedidos são copiados pelos demais, reduzindo os lucros extraordinários e disseminando as melhorias para a sociedade por meio de preços menores ou produtos inovadores.

Esse processo é contínuo em razão da pressão da concorrência em uma economia de mercado com produtores descentralizados. A ele devemos, por exemplo, seguidos desenvolvimentos no setor de informática ou descobrimento de medicamentos novos e mais eficazes.

Algo inverso ocorre com a ‘criatividade destrutiva’ de parte da política pública no Brasil. Com frequência, os governos propõem medidas inovadoras que prometem promover o desenvolvimento econômico ou reduzir as mazelas sociais – mas elas posteriormente fracassam, deixando um legado de fábricas pouco produtivas ou mesmo fechadas, e políticas públicas que custam muito mais caro do que o previsto, sem entregar os resultados prometidos.

Inovações fracassadas do setor privado duram pouco no mercado, já as estatais perduram.

Em O Mito do Estado Empreendedor, Deirdre McCloskey e Alberto Mingardi detalham o fracasso comercial do Concorde, produzido por um consórcio estatal anglo-francês. Mesmo assim, o avião supersônico voou por 27 anos, de 1976 a 2003, em contraste com fracassos do mercado privado como o Google Glass, que ficou apenas 3 anos no mercado, o computador NeXt da Apple (1 ano) ou a mudança da fórmula da Coca-Cola para um sabor mais doce – a ‘New Coke’ (3 meses).

Não faltam exemplos de políticas públicas que fracassaram no Brasil nas últimas décadas, mas que insistem em renascer das cinzas e prometer que, desta vez, será diferente.

Fracassou, por exemplo, a proposta de fortalecimento da indústria no começo da década passada, por meio de políticas de proteção e concessão de subsídios. Como Zeina Latif mostrou aqui no Brazil Journal, entre 2011 e 2015 a participação da indústria no PIB brasileiro diminuiu em comparação com o que se observava no resto do mundo. Isso não ocorrera nas duas décadas anteriores, em tempos de bem menos crédito subsidiado e proteções setoriais.

Mesmo com a forte expansão dos subsídios, a taxa de retorno das empresas de capital aberto diminuiu progressivamente, assim como a taxa de investimento. (Esses dados são sistematizados por Rocca (2016)).

Isso ocorreu simultaneamente à redução progressiva da taxa de crescimento do País, com uma breve exceção no fim de 2013.

Projetos ambiciosos, como o fortalecimento da indústria automotiva por meio do Inovar Auto, que protegia a produção doméstica, resultaram em muitas fábricas pequenas e ineficientes, posteriormente fechadas. O mesmo ocorreu com o plano de ressuscitar a indústria naval.

Em 2011, a inflação estava acima da meta e o Banco Central vinha aumentando a taxa básica de juros (Selic). Na reunião de julho, esse aumento foi de 0,25%, com a Selic chegando a 12,50%. Na reunião seguinte, com a inflação ainda acima da meta, o BC reduziu a taxa em 0,5%, para surpresa dos analistas.

Na época, muitos comentaram sobre o “experimento” de política monetária ao reduzir a taxa de juros ainda com inflação elevada. Houve críticas severas, mas muitos defenderam que seria hora de tentar outro caminho.

O resultado, contudo, foi o aumento da taxa de inflação, que ficou frequentemente bem acima da meta durante os anos seguintes.

Em abril de 2013, em razão da inflação elevada e resiliente, o BC começou uma longa sequência de aumento da taxa de juros, que chegou a 14,25% em 2015, bem mais alto do que ela estava antes da política “criativa” do BC.

Carlos Viana, Marco Bonomo e coautores fazem uma extensa análise com micro dados de 310 setores e milhares de produtos, trazendo evidências de que as expectativas de inflação afetam como as firmas aumentam seus preços em função de uma desvalorização cambial. Se essas expectativas de 2 a 2,5 anos à frente estão acima do teto de inflação (desancoradas), os preços são bem mais reajustados do que se as expectativas estão no teto ou abaixo.

Pelas suas estimativas, se as expectativas estão acima da banda superior do teto (desancoragem total), o impacto da variação cambial sobre o aumento dos preços é mais de 10 vezes superior ao caso em que as expectativas estão ancoradas.

Eles ilustram o  efeito das expectativas com a condução “criativa” da política monetária em 2011 e seu efeito na desancoragem das expectativas inflacionárias. O aumento da inflação, e posteriormente das taxas de juros, indicam os efeitos colaterais inversos aos pretendidos daquela decisão surpreendente de política monetária.

A política pública no Brasil por vezes inova sem embasar seus experimentos nas evidências disponíveis. Os muitos fracassos não deveriam surpreender.

Existe uma diferença importante entre a inovação dos mercados e a inovação dos governos. A primeira sofre a concorrência das demais empresas que estão igualmente interessadas em conquistar o público, e para isso precisam conseguir produtos mais baratos ou com mais qualidade.

Os governos, por outro lado, detêm o monopólio do que fazem. Seu desempenho frequentemente não tem a concorrência de tentativas independentes de fazer algo diferente com a mesma intenção e que, eventualmente, se revelem mais eficazes. Além disso, os custos do governo são socializados, podendo políticas públicas prosseguir por décadas a fio sem ser reformuladas, mesmo se ineficazes.

Os governos desempenham um papel fundamental na inovação quando adotam programas que espelham a concorrência dos mercados, como em muitos programas que financiam grupos descentralizados de pesquisa em ciência, que tentam abordagens diferentes para resolver problemas para os quais ainda não se conhece solução. A maioria fracassa, mas alguns, ocasionalmente, conseguem resultados inovadores em tecnologia ou em tratamentos médicos, por exemplo.

Entretanto, a avaliação de sucesso ou fracasso é de difícil implementação em se tratando de muitas políticas públicas. Como saber se um programa de habitação foi bem-sucedido, ou se outro desenho de programa poderia ter conseguido melhores moradias? Como saber se treinamento para adultos desempregados é bem-sucedido, ou se outra política pública lhes teria sido mais benéfica?

Essas perguntas são difíceis pois envolvem o que os economistas chamam de “contrafactual”: o que teria ocorrido se fosse outra a política, e não aquela que ocorreu?

Isso não significa, contudo, que governos não possam inovar e desenhar políticas cada vez mais eficientes para atender a sociedade. Mas para isso são necessários mecanismos institucionais de desenho e avaliação particulares.

Avaliar a eficácia das políticas públicas, identificar fracassos e propor mudanças para melhorar seus resultados requer protocolos de implementação das medidas e métodos de análise. Alguns exemplos talvez ilustrem melhor esse argumento.

A política de saúde já tratou desse problema há décadas. Novos medicamentos devem passar por vários estágios de testes, incluindo, ao fim, grupos de controle. Pessoas são sorteadas, alguns recebendo o medicamento; outras, placebo. A eficácia do tratamento pode ser então testada depois de vários desses experimentos, comparando-se o resultado nos que tomaram o medicamento com os que tomaram placebo.

Nas últimas duas décadas, esse mesmo procedimento passou a ser adotado para outras áreas da política pública em diversos países. Será que o monitoramento da frequência dos professores e uma remuneração variável em função dos resultados reduzem o seu absenteísmo e melhora o aprendizado dos alunos?

Várias escolas em uma mesma região da Índia são sorteadas, algumas recebem a nova forma de remuneração dos professores, outras mantêm a tradicional. Esther Duflo e coautores verificaram que o absenteísmo dos professores se reduziu e o aprendizado dos alunos aumentou no primeiro caso em comparação com o segundo.

Adriana Kugler e Ingrid Rojas analisam o impacto de longo prazo de um programa de transferência de renda para famílias de baixa renda. No começo do programa, os filhos dessas famílias tinham entre 7 e 16 anos. Elas mostram que as crianças mais jovens quando o programa começou, e que foram expostas por mais tempo aos seus benefícios, quando se tornavam adultas, obtinham maiores salários e tinham menor chance de estar desempregadas do que as crianças mais velhas.

Experimentos têm seus limites. Como no caso de medicamentos, são necessários muitos testes em diversas circunstâncias para se ter maior confiança nos resultados. Além disso, em muitos casos há restrições éticas à realização de experimentos ou eles nem mesmo são possíveis. Existem outras técnicas assemelhadas, mas menos robustas, como quase-experimentos ou com variáveis instrumentais.

Avaliações cuidadosas de impacto são igualmente necessárias em casos em que a economia de mercado funciona adequadamente bem, mas pode haver aspectos colaterais pouco perceptíveis, que talvez precisem de regulação pública.

O glifosato é um defensivo agrícola eficaz, mas há dúvidas se tem efeitos na saúde pública. Em várias regiões, ele contribuiu para um notável aumento da produtividade, que aumentou a renda e a qualidade de vida das pessoas. Mas ele também pode ter um efeito negativo sobre a saúde.

Como saber? Mateus Dias, Rudi Rocha e Rodrigo Soares utilizaram um método criativo para separar os efeitos positivos dos possíveis efeitos negativos em regiões do Brasil. Eles observaram que o produto naturalmente contamina bem mais as águas das cidades rio abaixo do que rio acima.

Todas essas cidades foram igualmente beneficiadas pelo aumento da produtividade e da riqueza decorrente da produção agrícola. Será que as cidades na descida dos rios apresentam, contudo, indicadores de saúde piores em comparação com as rio acima? A resposta é sim: 5% a mais de mortalidade infantil.

Veja que comparar as mesmas cidades antes e depois da introdução do herbicida não capturaria o efeito, pois os benefícios do aumento da qualidade de vida decorrente da melhora da riqueza mais do que compensam o impacto direto do glifosato na mortalidade infantil.

Para identificar o efeito do glifosato diretamente na saúde foi preciso comparar cidades semelhantes na melhora na produção agrícola, com a única diferença relevante de que o herbicida contaminava mais a água de algumas em comparação com a das demais.

Com frequência, a qualidade da avaliação de impacto controlada, e a identificação das oportunidades de melhoria depende de cuidados técnicos no processo de implementação dos programas, um tema que costuma estar ausente na gestão pública no Brasil.

A política pública poderia se beneficiar de protocolos que permitiriam avaliar com maior rigor o seu impacto e contribuir para a sua reformulação em caso de outras experiências mais bem-sucedidas. Em muitos casos, é possível introduzir reformulações na política com grupos de tratamento aleatorizados, com grupos de controle, como há décadas fazemos com novos medicamentos.

O Instituto Unibanco, por exemplo, há mais de 15 anos desenvolveu o programa Jovem do Futuro para auxiliar estados na gestão educacional. Ele foi introduzido em etapas. Primeiro, em poucas cidades, algumas recebendo o programa desde o primeiro ano, outras no segundo, e, por fim, as demais a partir do terceiro.

Verificado o impacto positivo, o programa foi estendido para um número crescente de cidades em poucos Estados, mas sempre com grupos aleatorizados iniciando o programa em anos consecutivos.

Deste modo, foi possível testar o impacto do programa, as variações do resultado nos diversos casos e suas possíveis causas. Como o programa foi progressivamente introduzido em diversos Estados, os dados acumulados permitiram aprender os aspectos mais eficazes e os possíveis problemas que comprometiam o sucesso do programa.

Esse processo de melhoria deve ser contínuo. Novos aperfeiçoamentos com controles devem ser recorrentemente propostos e avaliados, permitindo identificar alterações que garantam resultados mais eficazes.

Em muitos casos, essas abordagens não são possíveis pela natureza do problema a ser abordado, como ocorre, por exemplo, nos temas da macroeconomia ou de desenhos regulatórios.

Existem, contudo, muitas experiências assemelhadas em outros países que, com as técnicas da estatística, podem ser utilizadas para identificar nuances no desenho das políticas e de controles que permitam maior grau de confiança nos resultados.

Com frequência, a pesquisa aplicada aponta que detalhes na implementação das políticas podem ser decisivas para o seu maior ou menor sucesso a longo prazo, como o desenho das agências reguladoras, sua interação com o judiciário, a existência de mandatos claros para seus gestores, resguardando o papel do governo eleito para interferir na política pública. Importante enfatizar que existem casos bem-sucedidos de intervenção pública na promoção de setores produtivos em diversos países, inclusive no Brasil, ainda que bem menos do que de casos de fracassos. O segredo parece estar na qualidade do diagnóstico dos problemas, na análise da possibilidade de resolve-los e nos mecanismos de intervenção e controle.

Deve-se igualmente estudar cuidadosamente as diversas experiências no desenho de implementação da política, dos mecanismos de resolução de conflito e dos instrumentos independentes de controle e avaliação de impacto. Usualmente, gestores e proponentes de política pública têm dificuldade em reconhecer que seus projetos não foram eficazes.

Os protocolos para a implementação da política pública deveriam incluir conhecer detalhadamente os detalhes das experiências dos demais países, com base em pesquisas quantitativas, sempre ressaltando a robustez das estimativas e os eventuais resultados divergentes.

O Brasil tem uma quantidade impressionante de políticas públicas quando comparado com os demais países emergentes. Gastamos bem mais que nossos pares, mas frequentemente gastamos pior, como procurei documentar em trabalho com Marcos Mendes e coautores. Nossos estudantes aprendem relativamente menos. O mesmo ocorre com os indicadores de pobreza, para dar apenas dois exemplos.

Recentemente, temos assistido à retomada de várias propostas de política pública que fracassaram na última década, como mais uma tentativa de viabilizar a indústria naval no País (será a quarta vez), a criação de mecanismos parafiscais para financiar investimentos, a expansão do crédito subsidiado ou a criatividade na política monetária, aumentando a meta de inflação ou reduzindo os juros apesar da inflação ainda elevada.

Nenhuma dessas propostas está embasada em avaliações das razões dos fracassos das experiências anteriores e tampouco são apresentadas avaliações de impacto das mudanças que seriam implementadas, o que permitiria maior confiança que desta vez não repetiremos velhos fracassos.

A política pública no Brasil combina muita criatividade com a falta de protocolos de impacto e de desenho de implementação que tanto já nos custou no passado.

Marcos Lisboa é economista. Por transparência, o autor esclarece que faz parte do Conselho Deliberativo do Instituto Unibanco há 17 anos, e que até a semana passada foi presidente do Insper, onde Rodrigo Soares é professor, tendo sua pesquisa e dos seus coautores sobre glifosato sido aceita para publicação na Review of Economic Studies este ano.

 

CORREÇÃO:  A versão original deste artigo identificou o glifosato incorretamente como um fertilizante, em vez de um defensivo agrícola.