Sob o risco de parecer o proverbial menino que acabou de ganhar um martelo e trata tudo como se fosse um prego, proponho uma explicação simples para o surpreendente resultado das eleições americanas: a perda de poder de compra do americano médio durante o mandato de Joe Biden.

Os números das eleições – seja pela variação dos votos no nível dos condados com relação a 2020 ou nas quebras de gênero, educação, idade e etnia nas pesquisas de boca de urna – sugerem uma grande migração de eleitores para o campo da oposição ao governo.

Ainda leremos milhares de páginas (ou pixels) sobre o que levou a esse fenômeno, mas a abrangência dessa migração sugere uma motivação comum a todos os eleitores. O nível de preços (note: não a inflação, taxa de variação desse nível) relativo aos salários é a minha candidata inicial favorita.

Vamos a alguns números: desde o início do mandato de Joe Biden até outubro, os preços ao consumidor medidos pelo índice de preços cheio – consumidores não comem núcleos de inflação – subiram cerca de 20%.

Os salários médios por hora (ou o equivalente semanal, considerando as horas trabalhadas) subiram 18%, e a renda per capita disponível cresceu apenas 12%.

Em poucas palavras, o americano médio compra hoje, com o que recebe pelo seu trabalho, menos bens e serviços do que no final de 2021. Isso foi apenas atenuado pela queda recente da inflação: os preços continuaram subindo, mas a um ritmo mais lento – ainda não o suficiente para serem alcançados pela remuneração da mão de obra.

Como, parafraseando Milton Friedman, a inflação é sempre e em qualquer lugar um imposto regressivo – isto é, afeta mais os mais pobres, e os Estados Unidos são um país com distribuição de renda bastante desigual, é provável que mais da metade dos trabalhadores tenha sofrido essa perda do poder de compra. Isso pode ter custado a eleição aos Democratas.

Modelos que usam variáveis econômicas para prever o resultado da eleição, como o pioneiro, do economista de Yale Ray Fair, davam Trump como favorito (o modelo de Fair previu, inclusive, a vitória no voto popular), contrariando a noção de que a economia “forte” favoreceria o partido do Presidente.

Da mesma maneira, o arcabouço usado pela Ipsos/Eurasia, que combina a análise de pesquisas, um modelo baseado na popularidade do governo e no estado da sucessão (presidente em tentativa de reeleição ou indicando outro candidato) e o principal tema (main issue) que emerge na campanha (neste caso, também, aparentemente, o custo de vida) manteve o favoritismo de Trump mesmo com a escalada de Harris nos agregadores de pesquisas às vésperas da votação.

Se de fato a alta acumulada dos preços nos últimos quatro anos derrubou os Democratas, é interessante notar que uma das primeiras e mais populistas iniciativas de Biden – o American Rescue Plan Act (ARPA), de US$ 1,9 trilhão, assinado em março de 2021, já com a economia reaberta e viabilizado pela conquista inesperada da maioria do Senado, pode tê-los custado a eleição.

Ainda que seja difícil quantificar separadamente seus efeitos na inflação, há poucas dúvidas que o ARPA agravou o descompasso entre oferta e demanda na reabertura, em meio a alta de commodities, escassez de alguns manufaturados e disrupções nas cadeias logísticas.

Se a escalada da inflação, de 1,4% anual em janeiro de 2021 para um pico de 9% em junho de 2022 tivesse sido menos aguda, a avaliação do eleitor sobre a gestão da política econômica do governo poderia ser melhor. O dinheiro distribuído foi gasto e os preços não voltaram ao que eram.

Por fim, o ARPA também inverteu o tradicional ciclo eleitoral de gastos do governo (manter alguma austeridade no início do mandato para poder aumentar os gastos no período mais próximo à eleição), com o maior déficit anual do governo Biden (para não mencionar o volume transferido diretamente aos cidadãos) registrado no primeiro ano de governo.

Por aqui, o governo Lula III também está praticando essa inversão. Começou com o pé no acelerador do gasto, tendo trabalhado durante a transição para a aprovação da PEC da Transição, que passou a valer em 2023.

Agora, busca fazer um ajuste que permita manter o arcabouço fiscal até o fim do mandato, enquanto vê a inflação (sobretudo a de alimentos) acelerar.

O exemplo americano deveria gerar ao menos alguma apreensão no PT, porque aumenta o risco de uma operação eleitoral mais substancial, que traga ganhos às vésperas da eleição e jogue a conta para depois de 2026.

Se essa operação vai se manifestar em uma tentativa de resgatar a credibilidade junto aos mercados (e, a partir daí, valorizar o real e ajudar no combate à inflação) ou em mais gastos, por dentro ou por fora do orçamento, vai, em grande medida, determinar o rumo dos mercados locais em 2025 e 2026.

Luciano Sobral é economista-chefe da Neo Investimentos.