A impressionante votação unânime do PL 1087/25 na Câmara dos Deputados (493 x 0), que ampliou a faixa de isenção do Imposto de Renda e instituiu uma tributação sobre os chamados “super ricos”, parece confirmar a célebre advertência de Nelson Rodrigues: “toda unanimidade é burra; quem pensa com a unanimidade não precisa pensar.”

Não se trata aqui de discutir a justiça da medida, mas de evidenciar inconsistências e armadilhas técnicas que podem gerar distorções relevantes, sobretudo para as empresas e seus acionistas.

Um dos pontos mais delicados do projeto é o risco de se tributar lucros acumulados antes da vigência da nova lei.

A versão original do PL previa a incidência sobre resultados pretéritos, o que afronta grosseiramente os princípios da segurança jurídica e da irretroatividade da lei tributária. Embora o relator na Câmara, Dep. Arthur Lira, tenha anunciado que corrigiria essa inconstitucionalidade, o texto aprovado condiciona a isenção ao cumprimento de duas exigências: a realização, até 31/12/25, de ato societário que aprove o pagamento dos lucros apurados até essa data, e o seu efetivo pagamento até 2028.

A primeira condição é praticamente inexequível, já que é humanamente impossível fechar o balanço deste ano em 31/12 e dado que a Lei permite às empresas  um prazo de quatro meses após o encerramento do exercício fiscal para aprovar suas demonstrações financeiras. A segunda condicionante, por sua vez, esbarra na própria Lei das SA e no Código Civil, que determinam o pagamento dos dividendos dentro do mesmo exercício social em que forem declarados.

Renan CalheirosNa prática, a tentativa de Arthur Lira de “corrigir” a inconstitucionalidade produziu o contrário: se não alterado no Senado, o texto causará uma corrida dos contribuintes ao Judiciário para assegurar a irretroatividade da nova tributação.  Faria bem o Senado se suprimisse aquelas duas condicionantes que, na prática, inviabilizam a isenção pretendida.

Para piorar, o relator, Senador Renan Calheiros, sinalizou a intenção de aprovar o projeto sem devolvê-lo para a Câmara (ou seja, sem mudanças substanciais), e classificou a isenção dos lucros acumulados como uma “brecha” a ser fechada. Tremei, contribuintes!

Calma que tem mais: o PL famosamente prevê a retenção de 10% de IR sobre dividendos pagos a pessoas físicas residentes no Brasil (acima de R$ 50 mil mensais) e a não-residentes (independentemente do valor).

A medida busca compensar a perda de arrecadação decorrente da ampliação da isenção do IRPF,  mas deve, segundo estimativas da própria Câmara, gerar uma arrecadação adicional de R$ 34 bilhões no primeiro ano, enquanto a renúncia fiscal trazida pelo PL é estimada em R$ 25 bilhões. Ou seja, o Governo ainda vai ficar com um “troco” de R$ 9 bilhões.

Entretanto, diferentemente de projetos anteriores, que vinculavam a tributação dos dividendos à redução da alíquota corporativa, o novo texto mantém a carga total de 34% (IRPJ + CSLL) sobre o lucro das pessoas jurídicas, adicionando ainda os 10% sobre os dividendos.

Para evitar que a carga global ultrapasse 34%, o PL que está no Senado cria um redutor que devolve parte do imposto sobre a “renda mínima” caso a tributação efetiva da empresa já atinja aquele patamar.

Ocorre que o mecanismo de cálculo da alíquota efetiva ignora o efeito dos prejuízos fiscais acumulados. Assim, empresas que compensarem prejuízos passados terão uma alíquota efetiva inferior a 34% e, portanto, não poderão usufruir integralmente do redutor, sujeitando-se aos 10% adicionais.

O resultado é uma espécie de anulação prática dos prejuízos fiscais: a Receita Federal permite o abatimento formal, mas o desconsidera na apuração da renda mínima. Desse modo, o imposto incide sobre um lucro artificial, ferindo o princípio de que o IR deve atingir apenas o aumento real de riqueza. A Receita acaba, assim, transformando-se em uma sócia perfeita: participa dos ganhos, mas não das perdas.

11213 1cfd225b 5f04 29ce 244d c3536e4fe5eaSomando-se a manutenção da alíquota de 34%, a incidência de 10% sobre dividendos e a desconsideração dos prejuízos fiscais, a carga tributária de IR e CSLL das empresas brasileiras pode atingir 44%. (Sem falar no novo IVA, que será o maior do mundo.)

O mesmo problema do prejuízo fiscal também atingirá os benefícios fiscais da SUDAM, SUDENE, os Juros sobre o Capital Próprio, a amortização de ágio para fins fiscais, o Programa de Alimentação ao Trabalhador (PAT), dentre vários outros.

Os efeitos de todos esses benefícios serão eliminados, não obstante cada um possua um fundamento particular para sua existência.

Assim, o PL 1087/25, que pretendia ser um instrumento de justiça tributária, corre o risco de converter-se numa galinha dos ovos de ouro para o Fisco em 2026, especialmente se vier a atingir lucros acumulados ou resultados artificiais.

A pretensa simplicidade da nova “renda mínima” esconde armadilhas técnicas capazes de violar princípios constitucionais e comprometer a segurança jurídica das empresas. Ignorar essas incoerências é arriscar-se a criar uma tributação mais injusta do que aquela que se pretende corrigir.

A expectativa é de que o texto seja votado hoje na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado antes de seguir para o Plenário.

Luiz Gustavo Bichara é sócio do Bichara Advogados.