LONDRES – Quando cheguei ao Reino Unido, em 2014, deparei-me com um debate infinito sobre a independência da Escócia, que aliás sempre me pareceu inócuo. 

No entanto, aprendi nesses 10 anos que, acima de tudo, os ingleses adoram o debate pelo debate, pois acreditam no poder da troca de ideias e de testar hipóteses. 

Encontrei esse mesmo comportamento nas companhias privadas daqui, o que me deu a impressão de uma enorme perda de tempo. Hoje, no entanto, reconheço o poder de provocar discussões de diferentes pontos de vista para melhorar as decisões.

Fui surpreendido pela maneira como o DIT (Department of International Trade) foi solícito à minha decisão de vir fazer negócios no Reino Unido. Depois vi que, além de uma estratégia de Estado para incentivar negócios, todo o funcionalismo público inglês é voltado para garantir a cidadania.

Percebi no comportamento de Elizabeth II um modelo de como atuar nos temas públicos com disciplina – e o sentido de que o exemplo vem de cima. Presenciei a Rainha tirar de seu filho os títulos de realeza pelo envolvimento em um escândalo. Tive, portanto, uma experiência única de viver dentro de uma democracia liberal, cuja definição é a igualdade de oportunidade promovida por políticas públicas de Estado. Não é perfeita, mas claramente existe o desejo de sempre aperfeiçoá-la.

No dia 24 de junho de 2016, uma insônia me fez acordar às 3 horas da manhã, e levei um susto ao ver que o Brexit, contra todas as pesquisas, havia vencido com 51% dos votos. 

Considero esta a decisão mais estúpida que um país já tomou — afinal, por que abdicar de ser o centro financeiro do bloco europeu, ainda mais estando dentro da Comunidade Europeia com uma moeda própria?

Para mim, era óbvio que a elite econômica iria mover o mundo para reverter essa decisão antes de ser implementada. Minha convicção durou pouco, pois, de todos a quem perguntei, ouvi a mesma resposta: ‘eu sou contra, porém levamos muito tempo para construir nossa democracia, logo não vai ser um engano que vai fazer com que não se honre uma eleição’.

Todos nós soubemos depois que aquela eleição foi a primeira em que a extrema-direita usou suas técnicas de manipulação da verdade, e entendemos o que era a “Cambridge Analytica” e outras ferramentas. 

Porém, mesmo assim os britânicos honraram o voto sem pestanejar. Nesses 10 anos, vi a hegemonia do Partido Conservador inglês definhar em sucessivos enganos – a ponto de que, no último dia 4, os trabalhistas terem uma vitória histórica, conquistando 412 das 621 cadeiras do Parlamento.

Vi o Partido Trabalhista mudar radicalmente sua liderança – da extrema-esquerda de Corbyn para a “semi-Blair” de Sir Keir. Uma ruptura imensa depois de 14 anos. 

A passagem de bastão, como sempre, foi em um dia. Transição de um dia só é possível onde a alternância do poder é um valor e parte esperada do processo. Os Tories, desgastados, deixam o governo menores do que nunca, porém desejando boa sorte a quem chega. 

Em seu último discurso como Primeiro-Ministro, Rishi Sunak disse: “Embora ele tenha sido meu oponente político, Sir Keir Starmer em breve se tornará nosso primeiro-ministro. Nesse cargo, seus sucessos serão os nossos sucessos, e desejo a ele e sua família tudo de bom.”

Depois de 10 anos, estou convicto de que debater é parte do processo de viver em sociedade – e é algo que precisa ser ensinado nas escolas; de que políticas públicas são a base da democracia liberal; de que o voto é sagrado; e de que pode-se errar muito em governos, mas sempre há como corrigir os enganos, desde que os princípios básicos do Estado de Direito sejam um valor para cada um de nós, garantidos pela alternância pacífica e civilizada de poder.

No meio da cacofonia de vozes radicais que estamos assistindo  na política de alguns países, no meio do ambiente de transformação digital que encanta e ameaça o status quo e no meio da intolerância que campeia o debate público, o exemplo do Reino Unido é um sopro de ar fresco.

Fersen Lambranho é presidente do conselho da GP Investments e da G2D.