O governo e analistas comemoram o bom desempenho da receita do Tesouro no começo do ano como sinal de que será possível chegar perto da meta de resultado primário zero. Não estão dando atenção, contudo, ao forte crescimento da despesa – em especial, aquela com benefícios previdenciários e assistenciais.

No ritmo em que está crescendo, essa despesa obrigatória exigirá, já em 2024, um corte significativo em outras despesas. Isso suscitará resistência política. O próprio Presidente da República já está falando em flexibilizar o limite de gastos.

Se houver essa flexibilização, o déficit e a despesa total ficarão longe das metas atuais, e o arcabouço fiscal terá sua credibilidade comprometida.

Em janeiro, a despesa com benefícios previdenciários do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) foi, em termos reais, 4,4% maior que a de janeiro de 2023. Esse ritmo é muito superior ao limite máximo de crescimento da despesa imposto pelo arcabouço fiscal (2,5% ao ano). O RGPS, sozinho, representa 44% da despesa primária total, o que demonstra a pressão que exerce sobre o limite de gastos.

Os benefícios assistenciais (que incluem o Benefício de Prestação Continuada – BPC e outros de menor expressão, e que por simplificação chamaremos de BPC), embora tenham peso menor que o RGPS na despesa total, cresceram, em termos reais, inacreditáveis 16%, na comparação de janeiro de 2024 com o mesmo mês de 2023.

As duas despesas juntas foram as principais responsáveis pelo forte crescimento real da despesa primária total de 6,8%, na comparação de janeiro de 2024 com janeiro de 2023. Mais que o dobro do crescimento da receita líquida (3%).

Nosso principal objetivo é mostrar que as fontes de pressão sobre o gasto previdenciário e assistencial são persistentes, de modo que o ritmo atual de crescimento deve se manter ao longo deste ano e nos próximos.

As causas principais do aumento são a nova política de reajuste real do salário mínimo (SM) e a expansão do estoque de benefícios pagos.

O aumento do salário mínimo

Desde janeiro de 2023 o SM vem sendo corrigido acima da inflação. Ele indexa aproximadamente 60% dos benefícios do RGPS e 100% do BPC. Simulamos a despesa do RGPS e BPC supondo que não tivesse havido reajustes reais do SM e calculamos a diferença em relação à despesa efetivamente realizada.

Se não tivesse havido aumento real do salário mínimo, as despesas do RGPS em doze meses até janeiro de 2024 estariam R$ 8,4 bilhões mais baixas. Isso representa nada menos que 22% do aumento real da despesa do RGPS, na comparação de 12 meses encerrados em janeiro de 2024 com os 12 meses encerrados em janeiro de 2023.

De modo similar, o impacto do aumento real do SM sobre a despesa do BPC foi de R$ 2,4 bilhões, sendo responsável por 23% do aumento real da despesa total de BPC.

Esse efeito tende a ser crescente à medida que reajustes reais do SM se acumulam sobre os reajustes reais anteriores. Revogar ou alterar essa regra de correção parece uma tarefa hercúlea em termos políticos.

A forte expansão do estoque de benefícios

Outro fator de aumento da despesa do RGPS e do BPC é o crescimento no número de benefícios pagos, que tem atingido taxas elevadas.

Considerando o estoque de benefícios do INSS como um todo (previdenciários, assistenciais e de legislação especial), o incremento relativo no ano de 2023 (+4,5%) foi o maior dos últimos 19 anos.

Se olharmos apenas para o RGPS, a taxa de crescimento do número de benefícios em 2023 (+3,4%) foi a maior dos últimos 10 anos.

A taxa de crescimento de 2022 também foi alta, ficando acima da taxa média do período. Temos, portanto, nos dois últimos anos, um quadro de aceleração no crescimento do estoque dos benefícios.

No BPC, a aceleração no crescimento do estoque de benefícios é ainda mais patente, muito acima do observado o passado recente, com crescimento de 7,8% em 2022 e 11,3% em 2023.

O incremento das concessões foi um fator fundamental para o aumento do estoque de benefícios: em 2023 o INSS concedeu quase 6 milhões de benefícios (5,964 milhões), com alta de 17,7% em relação à média de 2016-2022 e de 14,4% relativamente a  2022.

Como o ritmo de cessação de benefícios não teve mudança relevante, o aumento das concessões resultou em crescimento do estoque de benefícios pagos.

O aumento da concessão de benefícios é circunstancial ou duradoura?

Uma provável causa da aceleração nas concessões é a adoção de instrumentos para agilizar a análise de requerimentos pelo INSS e reduzir a fila de espera por decisões da entidade.

Em 2021, o rito de concessão do BPC a pessoas portadoras de deficiência foi alterado, para contornar a falta de assistentes sociais disponíveis para analisar as condições sociais do pleiteante. Adotou-se um “padrão médio” de condições sociais, que dispensou a necessidade de avaliação individualizada.

De modo similar, foi instituído o “Atestmed”, uma solicitação padronizada de solicitação do benefício por incapacidade temporária (o antigo “auxílio-doença”), no qual apenas alguns pedidos, com sinais de desconformidade, são enviados para a perícia médica.

Recentemente, em 5/3/24, foi editada portaria que autoriza a realização de perícia por meio de telemedicina para a concessão de diversos benefícios previdenciários e do BPC para deficientes.

Esses procedimentos parecem surtir efeito. O “auxílio doença”, principal alvo das medidas de simplificação e automação, por meio do Atestmed, é o benefício previdenciário  com maior taxa de crescimento na comparação de janeiro de 2024 com o mesmo mês de 2023: 28,5% em apenas um ano, contra uma média de 3,2% no total de benefícios previdenciários e acidentários. O BPC para pessoa com deficiência, que também teve a sua análise simplificada, tem taxa de crescimento do estoque de benefícios de 12,9% em um ano.

Tudo mais constante, um rito mais expedito de concessão de benefícios tende a reduzir a fila de requerimentos pendentes. Em vez de ficar esperando meses por uma perícia, um auxílio-doença ou um BPC são liberados rapidamente, diminuindo o estoque de pendências sobre as mesas do INSS.

Nesse cenário, seria observado, inicialmente, um volume maior de concessões, pelo desrepresamento de pedidos que antes se acumulavam. Mais tarde, tão logo a fila fosse reduzida, o ritmo de concessão de benefícios cairia em direção à média dos anos anteriores.

Fosse esta a situação vivida atualmente, não haveria motivo para maiores preocupações: o aumento das concessões que estamos vendo em 2022 e 2023 seria temporário, a ser observado apenas enquanto a fila de espera diminui.

O problema é que os dados oficiais indicam que a fila está caindo muito lentamente e mantém-se grande, a despeito do forte crescimento das concessões.

Isso nos faz levantar a hipótese de que ao mesmo tempo em que o INSS agiliza as concessões, para tentar zerar a fila, o número de requerimentos estaria aumentando, empurrando a fila para cima.

O que poderia fazer o ritmo de requerimentos crescer ao longo do tempo? Em primeiro lugar, a própria tendência demográfica de envelhecimento, que aumenta a demanda por aposentadorias, além do arrefecimento de algumas medidas da reforma de 2019.

Em segundo lugar, a percepção de que ficou mais fácil e menos custoso solicitar e ter aprovado um benefício, dados os novos métodos automáticos de análise. Pessoas que não cumpram integralmente os requisitos de concessão podem ser estimuladas a solicitar o benefício.

Infelizmente, não há estatísticas detalhadas e de qualidade sobre os fluxos de novos requerimentos. Contudo, as poucas informações disponíveis indicam redução muito limitada da fila.  

O governo disponibiliza o dado oficial da fila de requerimentos de benefícios no portal da transparência. A abertura da informação se faz separando os benefícios de auxílio por incapacidade temporária (o antigo “auxílio doença”) dos demais benefícios, registrados como “benefícios sob análise administrativa”. Neste segundo grupo estão incluídos diversos benefícios previdenciários e o BPC.

Em janeiro de 2024, o estoque total de requerimentos aguardando solução estava em 1,6 milhão, contra 1,8 milhão em abril de 2023. A redução foi de 269 mil pedidos: inexpressiva frente ao aumento de 1,4 milhão do estoque de benefícios no mesmo período.

O que esses números indicam é que a fila parece estar caindo devagar, não explicando o forte incremento recente das concessões e permanecendo em nível elevado. Provavelmente estamos em um cenário no qual a fila não cai proporcionalmente ao aumento das concessões porque os requerimentos de benefício estariam crescendo.

Outra explicação para o crescimento das concessões seria um menor filtro nos processos expressos de concessão. Em geral, metade dos requerimentos apresentados ao INSS são indeferidos. Se os novos métodos automatizados estiverem sendo lenientes, deferindo um percentual maior de pedidos, haverá um aumento permanente no número de concessões.

Ou seja, ambos os fatores (aumentos de requerimentos e maior leniência nas concessões automatizadas) determinariam aumento duradouro na taxa de crescimento de concessões e, portanto, da despesa, sem que se observasse queda mais significativa da fila de requerimentos no longo prazo.

Não estaríamos apenas passando por um breve período de normalização de benefícios represados, mas sim mudando para um cenário permanente de mais requerimentos e mais aprovações.

A pressão sobre a despesa em 2024

Estimamos para 2024 despesa de, pelo menos, R$ 923 bilhões para o RGPS e R$ 109 bilhões para o BPC, já descontando o pagamento antecipado de precatórios de 2024 feito em 2023.

Ocorre que o orçamento deste ano só prevê R$ 908 bilhões para o RGPS e R$ 103 bilhões para o BPC. Haveria, portanto, uma insuficiência orçamentária de, no mínimo, R$ 20 bilhões.

Em algum momento, ao longo do ano, será preciso cortar outras despesas para acomodar o gasto do RGPS e BPC dentro do limite total de despesas do arcabouço fiscal.

Trata-se de valor significativo, que consumiria quase todo o limite máximo de contingenciamento que o governo admite fazer (R$ 23 bilhões).

Isso indica que o cumprimento do limite de despesa do arcabouço em 2024 não é trivial. Deve haver pressão para flexibilizá-lo, o que prejudicará também o resultado primário e a credibilidade do arcabouço. Como a pressão sobre o RGPS e o BPC continuarão nos próximos anos, o estímulo para mexer na regra fiscal é ainda maior.

Conclusões

As despesas com benefícios do RGPS e do BPC em 2024 estão crescendo em ritmo forte e ficarão, pelo menos, R$ 20 bilhões acima do montante orçado na Lei Orçamentária.

Isso exigirá corte em despesas discricionárias de difícil aprovação na arena política e deve gerar pressão pela flexibilização do limite de gastos do arcabouço. O próprio Presidente da República já vem falando em ampliar o limite de gastos.

A pressão continuará nos próximos anos, pois os fatores de aceleração na despesa do RGPS e BPC parecem ter vindo para ficar. A percepção desse cenário duradouro será reforço ao incentivo para mudar a regra fiscal.

A aceleração nas despesas do RGPS e do BPC decorrem da política de aumentos reais do salário mínimo, tem pouca relação com o esforço do governo para reduzir a fila de requerimentos, e parece ser impulsionada pelo crescimento nos requerimentos de novos benefícios e/ou pela maior leniência dos novos critérios automáticos de concessão.

A solução do problema passa por rever a regra de correção do SM, por fechar brechas nas regras de concessão de benefícios que dão margem a judicialização, por calibrar os critérios de concessão nos processos automatizados para evitar leniência, e por nova reforma que altere os requisitos de acesso aos benefícios para que eles sejam compatíveis com a restrição orçamentária no médio e longo prazo.

O otimismo com o bom desempenho da receita no início do ano precisa ser temperado com o cenário adverso do lado da despesa.

Marcos Mendes é doutor em economia e pesquisador associado do Insper.

Rogério Nagamine Costanzi é doutor em economia.

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