Passados dois anos da privatização da Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan), uma iniciativa pioneira do Estado do Rio Grande do Sul, é possível fazer uma avaliação da desestatização e também desse primeiro período de vigência da nova concessão.
É enorme a diferença entre a realidade atual e aquela anterior à privatização: os números de investimentos, obras de infraestrutura, cobertura de atendimento e outros marcadores aumentaram significativamente de 2022 para cá.
Essa mudança de perspectiva, que aponta para a universalização da oferta de água e esgoto no prazo do Novo Marco, foi possível graças a um contexto jurídico-regulatório que combinou as novidades legais de 2020 com as características da realidade onde a companhia atua.
Dessa combinação resultaram tanto um processo de desestatização adequado ao Marco e ao ambiente próprio da Corsan quanto uma disciplina regulatória da prestação dos serviços que proporciona clareza de regras, segurança jurídica, justa remuneração do investimento e serviço adequado com modicidade tarifária.
Na desestatização, o Rio Grande do Sul foi o primeiro (e até agora único) Estado a valer-se do mecanismo previsto no art. 14 da Lei 14.026/2020 que dá as diretrizes para a privatização de companhias estaduais de saneamento básico dotadas de contratos de programa com os municípios.
Em particular, o dispositivo prevê a possibilidade de substituição/reformulação desses contratos por iniciativa do controlador da companhia (o Estado), e disciplina a participação dos municípios neste processo, impondo, inclusive, prazos para que essa participação ocorra de maneira célere.
Foi nesse ambiente que o Governador Eduardo Leite anunciou, em março de 2021, a intenção de privatizar a Corsan. Leite enviou um PL à Assembléia Legislativa que se transformou na Lei estadual 15.708/2021, autorizando a privatização.
A partir daí, o Estado trilhou o percurso padrão: interação com os municípios; exame do processo pelo Tribunal de Contas do Estado; esclarecimentos em consultas e audiências públicas e, finalmente, a modelagem de venda e o leilão das ações. Este último ato ocorreu em dezembro de 2022, e a assinatura do contrato deu-se em julho de 2023.
Olhando para este passado recente, é possível afirmar que a desestatização foi bem sucedida.
Tanto a normativa nacional sobre este ponto do Novo Marco do Saneamento (desestatização) quanto a legislação gaúcha garantiram o andamento do processo e proporcionaram bons resultados para o Estado e para a sociedade gaúcha.
Para o País, fica a lição de que a privatização de companhias estaduais de água e esgoto não é um bicho de sete cabeças, ao menos desde as perspectivas jurídica e regulatória.
Vencida esta etapa, é necessário olhar para frente.
Quanto a isso, importa ver o arcabouço regulatório que irá balizar a prestação dos serviços ao longo de todo o prazo dos contratos.
É importante notar que a natureza e o conteúdo do contrato que vincula a Corsan aos municípios mudaram radicalmente.
Como reconhecido pela Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul – AGERGS, e pela Agência Reguladora Intermunicipal de Saneamento – AGESAN RS, o vínculo Corsan/municípios assume a natureza jurídica de uma concessão de serviços públicos, com todas as importantes consequências que se seguem disso.
Dentre essas consequências, a mais significativa é a adoção da regulação contratual, o modelo regulatório oposto àquele discricionário, nos termos da Norma de Referência 6 de 2024 da ANA.
Previsto para desestatizações como as da Corsan, este modelo caracteriza-se por dois pontos: (i) disciplina econômico-financeira positivada no instrumento de concessão, sem deixar amplas margens para a atuação regulatória; (ii) primazia do contrato, em caso de dúvida ou conflito entre ele e as normas de regulação. Além disso, neste modelo, a situação de equilíbrio econômico-financeiro é definida no momento inicial da concessão e não é refeita de tempos em tempos, como ocorre na regulação discricionária. Com isso ganha-se em estabilidade normativa, previsibilidade e segurança jurídica.
Outro traço estruturante do contexto regulatório está na concepção integrada da prestação dos serviços de água e esgoto em todos os municípios servidos pela companhia. Ainda que a regionalização não tenha se dado a partir das unidades regionais tal como previsto na legislação estadual, ela ocorreu em base aos novos contratos de concessão celebrados com cada Município.
Neles, os titulares e a Corsan assumiram o compromisso de zelar pela uniformidade regulatória e de fortalecer o “Sistema Corsan”, definido como o universo de todos os contratos que a empresa possui com os titulares. A sua existência é que permitirá a universalização em todo o território concedido.
Concessão, regulação contratual e prestação integrada são as bases do novo sistema.
A eles agrega-se hoje um outro elemento inexistente à época: o amadurecimento institucional do setor. Em 2021, o Novo Marco contava com um ano de existência e a ANA não tinha começado a produzir normas de referência para os serviços de água e esgoto. Hoje o NMSB foi testado com sucesso pelas diversas concessões já ocorridas e a ANA conta com 7 NRs.
Espera-se que este exemplo pioneiro da CORSAN perdure e sirva como inspiração para outras iniciativas, para que, em 31 de dezembro de 2033, possamos todos comemorar “o atendimento de 99% da população com água potável e de 90% da população com coleta e tratamento de esgotos” (art. 11-B da Lei 11.445/2007).
Gustavo Kaercher Loureiro é sócio de Souto Correa Advogados e assessorou o Consórcio AEGEA no leilão da Corsan. Hoje é consultor jurídico da concessionária.
Eduardo Cunha da Costa é Procurador Geral do Estado do Rio Grande do Sul.