Quando eu tinha oito anos de idade, assisti a um filme sobre o Julgamento de Nuremberg. Vi as cenas dos campos de concentração, os quadros feitos de peles de rostos humanos e tantas outras imagens grotescas. Aquilo ficou gravado em minha mente infantil e me gerava um sentimento intraduzível. Nem sei como, em plena tarde, uma televisão poderia transmitir aquelas imagens. Imagino que não havia censura sobre o Holocausto, pois a propaganda era para que aquela crueldade nunca se repetisse.
Nos anos que se seguiram, fui amadurecendo e, na busca por entender como aquela situação aconteceu, cheguei ao filme “O Ovo da Serpente” de Ingmar Bergman (1977), que retrata a desolação na Alemanha após a Primeira Guerra. No entanto, vi logo que tal desolação não era o bastante para justificar tamanha barbárie, pois o filme “Ironweed”, de Hector Babenco (1987), também mostra a desolação americana na década de 30, por conta da depressão econômica, e nem por isso surgiu, nos Estados Unidos, uma “indústria” de exterminação de seres humanos.
A verdadeira contribuição para explicar o fenômeno do nazismo viria do trabalho da filósofa judia Hannah Arendt, que cunhou o termo “Banalidade do Mal” no livro “Eichmann em Jerusalém”. Em 1960, quando Adolf Eichmann foi julgado em Jerusalém pela sua participação no extermínio de judeus, Hannah Arendt fez a cobertura jornalística do julgamento para a “The New Yorker”. Ela viu no comportamento de Eichmann apenas as ações de um funcionário público, um burocrata, um cumpridor de metas/ordens. Evidentemente que a reação a essa tese foi violenta por parte, principalmente, das entidades judaicas.
Arendt, no entanto, colocou uma luz sobre o comportamento das massas em situações nas quais essas massas não conseguem pensar, não conseguem ter uma visão crítica do mundo que as cerca.
O nazismo, segundo Arendt, tirou a humanidade do indivíduo, incapacitando as pessoas a terem compaixão para com o próximo. Nos campos de concentração, o sofrimento tornou-se banal, corriqueiro, e até as vítimas se “acostumavam” com as atrocidades perpetradas.
Tive esse sentimento na pandemia, durante a qual senti que a morte estava se banalizando, e que íamos nos habituando aos números absurdos de mortes diárias. Assistimos a pessoas ironizando tais mortes publicamente, sem nada lhes acontecer. Não receberam críticas, nem repúdio.
O discurso nazista levou o povo alemão a agir contra a humanidade, sem se culpar e sem refletir sobre as consequências dos seus atos. E não foram só os alemães, uma vez que outros povos europeus adotaram o mesmo discurso a cada território que Hitler ocupava.
Hannah Arendt teve a coragem de analisar o fenômeno de forma racional e científica, buscando tornar claro que situações similares poderiam ocorrer no futuro, na medida em que o mal não fosse combatido. Na sua visão, as ditaduras e tiranias resultam da concentração do poder nas mãos de “um ou de alguns”, que buscam instaurar suas próprias leis, censurando meios de comunicação, tirando as liberdades individuais, caçando opositores e valorizando as forças armadas, uma vez que essa é a forma mais fácil de dominação.
De acordo com Arendt, o fenômeno mais recente do totalitarismo difere das tiranias – que existem desde que o mundo é mundo. O totalitarismo alega seguir leis históricas e/ou da natureza, pelas quais torna-se aceitável o sacrifício dos seres humanos. Por essa definição, Nazismo e Stalinismo seriam regimes totalitários, pois preconizam que as pessoas que não se “enquadram” devem morrer.
Arendt diz que o totalitarismo pode acontecer igualmente em regimes de direita e esquerda. Regimes totalitários seriam possíveis onde existe a “solidão”, e ela define “solidão” como o fenômeno pelo qual os indivíduos, mesmo cercados de outras pessoas, não conseguem estabelecer relações comuns.
Os regimes totalitários manipulam essas massas solitárias, engajando-as numa ideologia com base nas leis históricas e/ou naturais. Neste sentido, o totalitarismo é uma novidade do século 20, quando surgiram as sociedades de massas.
Esse conceito da solidão das massas, no meu ponto de vista, está na origem do desenvolvimento recente das redes sociais, através das quais muitos alcançaram uma voz que não corresponde a sua relevância no mundo real. Essa horda de solitários consegue se agrupar por temas e, assim, suprir sua necessidade social de “pertencimento”.
Imagino que todos nós conhecemos pessoas (em muitos casos parentes) que, embora nunca tenham conseguido, na vida real, algum destaque profissional e mesmo social, hoje exibem dezenas de milhares de seguidores nas mídias sociais. E nós sequer entendemos como isso pode ter acontecido com aquela pessoa.
O espaço virtual, apesar de todos os seus pontos positivos, acabou sendo um campo fértil para que discursos de viés totalitário encontrem, de forma barata e fácil, um público em busca de uma ideologia que mascara as suas frustrações.
Nesse grupo social, a atitude de aceitar – e repassar – informação, sem o necessário exercício da crítica, acaba gerando as teorias conspiratórias que vagam pelos grupos de whatsapp.
O combate a esse processo de deterioração do espaço público não está no embate, mas no acolhimento. A sociedade precisa olhar para as pessoas capturadas pelo discurso do mal, como Hannah olhou para Eichmann, e perceber que elas precisam ser entendidas e respeitadas.
Combater o mal é recuperar a “Agora”, a denominação dada à praça pública das cidades gregas, onde se construiu a democracia com base no diálogo de ideias. Todas as pessoas capazes de compreender, mesmo que minimamente, o que Hannah Arendt teorizou, deveriam combater a discussão sobre fatos, que se tornou um lugar comum, e promover o debate de ideias.
Sendo assim, devemos retribuir um xingamento apenas com o desprezo silencioso, responder à notícia falsa do whatsapp com verdade e candura, ter paciência e generosidade contra o cancelamento, lembrar da oração de São Francisco ao nos depararmos com a raiva e, contra um tapa no rosto, dar a outra face.
Passadas tantas décadas desde que vi aquele filme em minha infância, e tendo construído uma carreira que me deu uma “voz”, não posso ficar calado, sem expressar minha crença de que nossa sociedade pode ser do diálogo e solidária. A esmagadora maioria da população quer o bem comum.
Que a eleição de 2022 traga de volta a “festa da democracia”. Era assim que falávamos em 1989 quando, machucada pela inflação, sofrida pela ditadura militar, humilhada pela dívida pública gigantesca e isolada do mundo, minha geração teve a sonhada oportunidade de votar para Presidente.
A Festa da Democracia. A Festa de Amigos. A Festa de Irmãos. Uma Festa na qual o discurso de ódio, venha ele de qualquer lado, não tenha vez.
Fersen Lambranho é presidente dos conselhos de administração da GP Investimentos e da G2D.