A preocupação com segurança pública nunca foi tão alta no Brasil. Crime e violência são apontados como o maior problema do País, e a segurança pública é a área em que o governo federal tem a pior avaliação segundo as pesquisas de opinião. 

Em resposta à crescente pressão pública, o Governo apresentou uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) durante reunião com governadores em 31 de outubro.

A segurança pública é a área que mais carece de desenho institucional e regulamentação comparada a outras áreas de governo. 

O artigo 144 da Constituição é breve, estabelecendo que “a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos…” e lista sete instituições policiais.

Desse texto constitucional, existem duas leituras simplistas amplamente repetidas no debate público:  que segurança pública é sinônimo de polícia, e que ela é, sobretudo, uma responsabilidade dos estados da federação.

De fato, 83% do efetivo policial do Brasil está sob a gestão dos governos estaduais e, até a aprovação da Lei do Sistema Único de Segurança Pública, em 2018, não havia uma legislação que especificasse o papel de outras instituições, além das polícias e dos estados. 

Isso cria uma situação muito cômoda para o governo federal e os municípios, que se sentem autorizados a não agir.

Mas a realidade é bem distinta desse cálculo político.

A insegurança pública se manifesta sobretudo no nível local, e determina nossa forma de se relacionar com a cidade – sendo, portanto, um tema sensível para as gestões municipais.

Além disso, as estruturas criminosas se sofisticaram muito nas últimas décadas, e operam hoje em rede e escala nacional e transnacional, sendo impossível um ente federado tentar conter o problema sozinho.

Dessa forma, a questão não é se os municípios e governo federal poderiam contribuir para a segurança pública, e sim como eles devem ser atores fundamentais em um Sistema de Segurança Pública junto com os estados.  

É com base nessa visão que se defendeu a criação de um Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), inicialmente proposto em 2007 e transformado em lei em 2018. Seu objetivo foi disciplinar e organizar o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança, definir as responsabilidades de cada ente federado e suas instituições, e determinar uma política de segurança com objetivos claros e uma série de programas calcados na prevenção e controle do crime e da violência.

Mas o SUSP não conseguiu ganhar tração.

Há diversos diagnósticos sobre porque isso não ocorreu. O diagnóstico do atual governo é de que a Lei do SUSP não possui força suficiente por ser uma lei ordinária, carecendo do peso de estar no texto constitucional. Essa discussão legal acabou ofuscando a questão crucial: qual segurança pública queremos promover?

Como em qualquer decisão de gestão, deveríamos começar discutindo quais são nossos problemas centrais, onde eles se manifestam com mais intensidade, e qual é o conhecimento acumulado sobre como resolvê-los.

E deveríamos fazer isso utilizando dados, sempre que possível. A partir daí, poderíamos começar a desenhar e testar estratégias de enfrentamento efetivas.

No entanto, em vez de discutir verdadeiramente nossos problemas, passamos quase todo o tempo reafirmando que temos pouco efetivo policial, que prendemos pouco, que as penas são muito brandas e que vivemos no país da impunidade. 

Independentemente de haver mérito nessa leitura, essa postura preguiçosa resulta sempre nas mesmas soluções: “invista em salários e contrate mais policiais”, mas sem falar em cobrar resultados ou investir na profissionalização e no controle da atividade policial; “invista no aparato militar das polícias”, ignorando que o uso da força militar tem se mostrado ineficaz, abrindo portas para a corrupção policial e corroendo a legitimidade da polícia a médio prazo; “aumente as penas”, sem considerar a capacidade do sistema em identificar criminosos e processar casos; “aumente o número de presos”, sem nunca discutir a gestão prisional e a reabilitação de encarcerados.

Na prática, aplicamos um único analgésico genérico para diversas doenças: mais policiais, viaturas, armamento e uso da força. A discussão nunca é sobre se o remédio é adequado para a doença; discute-se apenas a intensidade da dose. 

O Brasil tem o desafio de criar um paradigma para as políticas de segurança pública, centrado na dissuasão e prevenção do crime.

O que parece um sonho distante é um desafio que o País superou com êxito na área da saúde pública. Até a década de 1980, tínhamos um sistema centrado na assistência médica hospitalar, exclusivo para contribuintes previdenciários.

Hoje usufruímos de um sistema de saúde universal, pautado no modelo de saúde integral e em que as três esferas de governo têm funções definidas. 

O governo federal define estratégias e responsabilidades, estrutura sistemas de informação e financia grande parte do custeio. Os estados administram os serviços de média e alta complexidade e são responsáveis pelo planejamento e coordenação regional. Os municípios são protagonistas nos territórios através da atenção básica, da vigilância sanitária e da execução dos programas de vacinação. O SUS não é perfeito: enfrenta sérios problemas de subfinanciamento e acesso a serviços de média complexidade, mas é um avanço expressivo sobre o que tínhamos há 30 anos, e por isso é, e deve ser, a grande inspiração para o SUSP.  

O que a PEC propõe 

É nesse contexto que surge a motivação e o entusiasmo de alguns com a proposta de constitucionalizar o SUSP.

Mas, afinal, o que está sendo proposto?  

A proposta apresentada tem três pilares: (i) altera o artigo 144 para atualizar as competências da Polícia Federal (PF) e da Polícia Rodoviária Federal (PRF), (ii) propõe alterações nos artigos 21, 22, 23, 24 de modo a conferir à União a competência para estabelecer diretrizes gerais quanto à política de segurança pública e defesa social, que compreenderá o sistema penitenciário; e (iii) constitucionaliza o Fundo Nacional de Segurança Pública e Política Penitenciária.  

Em detalhes, o primeiro pilar busca aumentar as competências da PF para atuar no combate a crimes ambientais, incluindo aqueles cometidos por organizações criminosas e milícias ambientais. Embora a PF já opere no combate a esses crimes, no contexto atual é necessário que se encontre uma vinculação com um crime federal para justificar seu envolvimento. Essa mudança torna a atuação mais transparente sobre crimes que envolvem muitas vezes agentes públicos locais e cujas redes transpassam fronteiras estaduais e nacionais.   

A proposta mais ousada é transformar a PRF em uma polícia ostensiva federal. Com isso, o governo federal pretende contar com uma força de policiamento ostensivo sob seu comando, que possa ser mobilizada para resolver crises de segurança federais ou estaduais.

Esse papel foi anteriormente desempenhado pela Força Nacional e pelo Exército, sob a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), ambos expedientes envolvidos em questionamentos públicos e legais. O risco desse ponto é promover mais uma força policial que seja engolida por interesses corporativos e caia no velho modelo militarizado, onde só se discute quais armas e viaturas serão compradas, com pouca atenção para desenvolvimento de boas práticas e criação de estruturas de controle e prestação de contas.   

O segundo pilar da proposta foca em mudanças nos artigos 21, 22, 23, 24, que buscam colocar explicitamente no texto constitucional que cabe à União (i) estabelecer a política nacional e coordenar o SUSP (artigo 21, que estabelece o que cabe à União), (ii) definir normas gerais de segurança (artigo 22, que estabelece as funções privativas da União), e (iii) prover meios destinados à manutenção da segurança (artigo 23, que diz quais as competências comuns entre entes federados), e (iv) legislar sobre segurança pública e defesa social (artigo 24, que estabelece o que a União faz concorrentemente aos outros entes federados).

É difícil contestar que seria positivo ter essas funções explicitadas no texto constitucional. A questão é: uma vez estabelecidas essas obrigações, o que a União de fato fará? Essa pergunta permanece sem resposta.

Meu receio é que se invista um tempo enorme e um capital político escasso para aprovar uma emenda constitucional e, ao final, continuemos na mesma situação. 

A boa notícia é que o governo federal está nas mãos de um partido que antes até evitava discutir segurança pública, e agora parece querer fazer algo a respeito. 

Há diversas medidas que podem ser implementadas dentro do nosso arcabouço legal.

Em primeiro lugar, é fundamental que o governo estabeleça explicitamente uma Política Nacional de Segurança Pública e Defesa Social. Um passo nessa direção foi dado em 2021 pelo governo anterior, com a elaboração do Plano Nacional de Segurança Pública, que condiciona o acesso ao Fundo Nacional de Segurança Pública à criação, por estados e municípios, de seus próprios planos entre 2023 e 2024.

Embora essa exigência possa parecer modesta, ela cria um movimento para que haja o mínimo de planejamento institucional, algo em que a segurança pública ainda está muito atrás em comparação a outras áreas. Evidentemente, esse plano necessita de aprimoramentos e, acima de tudo, de liderança e vontade política para que seja realmente utilizado como um guia mestre. Isso pode ser iniciado imediatamente. 

Em segundo lugar, para ter densidade, um plano precisa ser alicerçado em programas que abordem problemas criminais específicos. Nesse sentido, o governo federal lançou, em outubro do ano passado, um ainda pouco conhecido Programa Nacional de Enfrentamento às Organizações Criminosas (ENFOC), que serve como um ótimo ponto de partida para uma discussão mais focada sobre como controlar a expansão e o poder econômico do crime organizado.

O programa é estruturado em cinco eixos de atuação e define ações concretas a serem promovidas. O problema central, no entanto, é que ele carece de uma estrutura de governança que estabeleça responsabilidades claras para o cumprimento de cada ação, um sistema de acompanhamento de execução e entregas, além de mecanismos de incentivo para sua implementação.

O plano também possui poucos elementos fundamentais para o controle do crime organizado que não dependam exclusivamente das polícias, como mecanismos de regulação de mercados para conter o poder econômico dos grupos, algo para o qual o governo federal possui óbvia vantagem comparativa. 

Por fim, é fundamental criar um sistema de informação capaz de monitorar se as ações executadas estão, de fato, conseguindo controlar o crime organizado.

Atualmente, o máximo de que dispomos são levantamentos dos nomes das organizações criminosas que atuam em cada estado, o que é insuficiente, pois não permite medir os avanços na contenção do problema. Precisamos de informações sistemáticas sobre como esses grupos operam — desde a compreensão da geopolítica do crime organizado, com foco em suas áreas de expansão e os motivos por trás delas, até a identificação dos mercados legais e ilegais em que estão envolvidos, dos mecanismos de coerção que utilizam e dos aspectos da vida social local que governam.

Eliminar completamente esses grupos é uma meta improvável de alcançar, mas o governo pode buscar reduzir a violência que eles provocam, assim como seu poder econômico e político. E pode começar a fazer isso desde já. 

A segurança pública no Brasil é marcada pela falta de planejamento e de visão sistêmica, e pela ausência de políticas de Estado. Mais do que mudanças na legislação, o que a segurança pública precisa urgentemente é da definição de objetivos claros e de um sistema de governança capaz de implementar programas focados nas causas dos problemas.

Promover essas mudanças exige, acima de tudo, tratar a segurança pública como uma política pública, e não apenas como uma questão corporativa ou de infraestrutura legal. 

Talvez seja verdade que uma política só ganhe força ao ser constitucionalizada, mas é certo que, sem incentivos corretos e sem liderança, nada de efetivo acontece no campo das políticas públicas. 

Joana Monteiro é mestre e doutora em economia pela PUC-Rio e professora da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas. Foi presidente do Instituto de Segurança Pública do governo do estado do Rio de Janeiro (2015-2018) e coordenadora do Centro de Pesquisas do Ministério Público do Rio de Janeiro (2019-2021). Foi pesquisadora visitante nas Universidades de Harvard (2009-2012) e Columbia (2021-2022) e professora visitante na Universidade de Chicago (2023). É co-fundadora do Leme, um laboratório dedicado a formular e testar intervenções eficazes, viáveis e escaláveis voltadas para a redução da violência no Brasil.