O Ministério da Economia tem alimentado a narrativa de que estaria em curso uma “mudança fiscal estrutural”, com melhoria permanente no nível da despesa e da receita primárias.  

Esse discurso otimista, em contexto de governo fraco junto ao Congresso, ascensão do Centrão e véspera de eleição, gera um risco elevado de que sejam aprovadas medidas de afrouxamento fiscal.

É o que está ocorrendo, por exemplo, com a derrubada da arrecadação do Imposto de Renda, que se desenha com a reforma ora em discussão.

Olhando os detalhes, percebe-se que o quadro fiscal permanece precário.

Um documento do Tesouro Nacional publicado semana passada indica que o déficit primário esperado para este ano é de R$ 155,4 bilhões (1,8% do PIB). Se forem deduzidas as despesas com créditos extraordinários (R$ 124,9 bilhões), realizadas para lidar com a pandemia, teríamos um déficit “ex-covid” de apenas R$ 30,5 bilhões em 2021 (veja as linhas A a C da tabela abaixo).

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Esse número, contudo, precisa passar por ajustes para excluir fatores que não representam ganhos fiscais permanentes. A tabela mostra que a despesa primária ficaria R$ 42,2 bilhões mais alta (linha D acima), e a receita primária, R$ 11,1 bilhões mais baixa (linha E acima).

Em primeiro lugar, parte dos créditos extraordinários utilizados para pagar o Auxílio Emergencial levaram à redução dos gastos com o Bolsa Família. Com o fim do Auxílio, o Bolsa Família subirá em R$ 9,5 bilhões, mesmo sem considerar os planos de ampliar o Programa.

De modo similar, o Seguro Desemprego teve seu desembolso reduzido. O Programa de Manutenção de Emprego e Renda (BEm) evitou um crescimento ainda maior do desemprego, diminuindo a demanda pelo benefício.

Se, a partir de 2022, com o fim do BEm, o Seguro Desemprego voltar ao nível histórico de 2019, isso representará R$ 3 bilhões a mais de gastos. Estimativa conservadora, pois o desemprego estará maior.

Já o Abono Salarial teve uma parcela dos gastos de 2021, no valor de R$ 7,4 bilhões, transferida para 2022. Não é, portanto, corte de despesa, e sim postergação.

No caso da Previdência e do Benefício de Prestação Continuada, a despesa prevista para o ano está baixa em função do represamento de requerimentos. Na hipótese de que todos os pedidos com mais de 45 dias desde a data de protocolo fossem examinados, e considerando a taxa histórica de 50% de indeferimento, estimo que a despesa anual subiria em, pelo menos, R$ 8 bilhões.

O impacto do FIES nas contas primárias foi positivo em R$ 1,8 bilhão por questões idiossincráticas. Seja porque as baixas contábeis de créditos inadimplentes foram suspensas por lei, seja porque a pandemia diminui a demanda pela linha de crédito. Ainda houve um pagamento do Fundo Garantidor ao Tesouro. Como o Fundo é 100% do Tesouro, o dinheiro mudou do bolso esquerdo para o direito.

Os empréstimos concedidos pelo Tesouro são habitualmente contabilizados pelo valor líquido: o quanto foi desembolsado menos o que se recebe em amortizações de empréstimos anteriores. Em 2021, serão recebidos valores elevados de amortizações dos empréstimos emergenciais feitos em 2020. Tal montante, estimado em R$ 2,5 bilhões, não deve se repetir nos próximos anos.

Por fim, a normalização pós-covid exigirá o retorno de atividades que ficaram suspensas, como aulas presenciais, consultas e cirurgias eletivas, entre outras. Não menos que R$ 10 bilhões seriam necessários para recompor as despesas correntes relativas ao retorno das atividades.

No lado da receita, R$ 11,1 bilhões se referem a restituições feitas ao Tesouro (linha E) — mais um fator circunstancial, que não se repetirá nos próximos anos.

Feitos esses ajustes, o déficit primário ex-covid estaria próximo de R$ 84 bilhões (0,97% do PIB). Um número nada confortável, se levarmos em conta que precisaríamos de pelo menos um superávit de 1% do PIB para garantir uma trajetória de redução gradual da relação dívida/PIB.

Estamos falando de um ajuste fiscal necessário de 2 pontos do PIB (R$ 172 bilhões), que poderia vir da recuperação da receita. Ainda assim, o Ministro da Economia tem mostrado disposição de reduzir a carga tributária no âmbito da reforma do Imposto de Renda.

O argumento é de que “a receita está R$ 200 bilhões” acima do previsto, e que isso refletiria uma mudança permanente de patamar. Daí seria possível abrir mão de parte do ganho, para desonerar os contribuintes.

O gráfico abaixo mostra que, a despeito da melhoria da receita de 2021 em relação a 2020, ainda estamos muito abaixo da média dos últimos anos.

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Os reflexos da narrativa otimista já são claros na tramitação da reforma do Imposto de Renda, em que a cada dia se anuncia mais uma redução de carga. O relator da matéria joga números ao vento para dizer que haverá estímulo à  atividade econômica e isso reverterá a perda de receitas.

Não é simples esse tipo de cálculo, que envolve estimação da elasticidade de oferta de diversos setores da economia, bem como o impacto das isenções na poupança agregada da economia. O Ministério da Economia deveria apresentar seus números e a respectiva metodologia, dando realismo ao debate.

Deixar o relator lançar especulações sem fundamento sobre o comportamento da receita é, no mínimo, temerário. Alimenta o clima de vale tudo, estimulando novas propostas de aumentos de gastos e isenções fiscais.

Marcos Mendes é pesquisador associado do Insper.