A fúria tarifária do governo Trump trouxe de volta a guerra comercial entre China e EUA, mas com outro nível de beligerância e efeitos ainda mais intensos para a economia global.

Estes eventos nos levam a uma reflexão acerca do que será o novo modelo de funcionamento do sistema financeiro global. Quem está há mais tempo no mercado se lembrará que, entre 2004 e 2006, uma discussão interessante emergiu junto a economistas e mesas de operação, provocada por um artigo dos economistas Michael Dooley, David Folkerts-Landau e Peter Graber.

Eles argumentavam que o sistema financeiro global funcionava, desde 2000, de forma semelhante ao antigo sistema Bretton Woods (1944-1971), mas com uma nova configuração – e por isso essa teoria ficou conhecida como “The New Bretton Woods”.

O argumento principal era de que o mundo novamente se via dividido entre centro (os EUA) e periferia (os países exportadores da Ásia, principalmente a China). 

O centro era emissor de moeda (dólar), consumia muito e importava muitos bens, incorrendo em vultosos e crescentes déficits comerciais. 

A periferia (essencialmente a China), era um grande e eficiente produtor de bens, exportava muito e, portanto, incorria em superávits comerciais crescentes, o que gerava acumulação de reservas em dólares. Parte relevante dessas reservas, por sua vez, era aplicada em títulos do Tesouro americano e, desse modo, ajudavam a financiar os crescentes déficits comercial e fiscal daquele país, mantendo o dólar forte. 

Além disso, essas economias da periferia se destacavam por gerenciar ativamente suas taxas de câmbio, de modo a mantê-las sempre depreciadas, protegendo suas exportações. 

Esse sistema gerava um benefício mútuo: crescimento econômico rápido e intenso na China, e financiamento barato nos EUA, sustentando níveis elevados de consumo e dispêndio. 

Esse equilíbrio, por óbvio, era algo instável e de sustentabilidade limitada, mas que poderia durar muitos anos enquanto continuasse a gerar vantagens mútuas para os dois lados. Seu fim provavelmente só ocorreria na hipótese dos déficits americanos se tornarem gigantes e não financiáveis, ou se os países da periferia deixassem de acumular dólares, ou provavelmente uma combinação das duas coisas.

Para ilustrar com dados econômicos, a média do superávit comercial da China vs EUA desde 2006 é de aproximadamente US$ 320 bilhões/ano, totalizando US$ 5,8 trilhões de 2006 a 2024. As reservas cambiais da China saltaram de US$ 1 trilhão em 2006 para US$ 3,2 trilhões em 2024, sendo que estimativas do FMI apontam que de 58% a 60% desse total estão diretamente na moeda americana (dólares). 

As compras de Treasuries americanos pelos chineses também cresceram substancialmente nesse período: o estoque da China saiu de pouco mais de US$ 60 bilhões em 2001 para mais de US$ 1 trilhão em 2020, e encerrou 2024 em US$ 760 bilhões.

Assim, o que o tarifaço do governo Trump provavelmente inaugura é o início do fim desse sistema de interdependência mútua de EUA e China. Os déficits americanos podem ter chegado a um patamar que coloca em xeque o papel do dólar como moeda global de reserva e, portanto, poderia comprometer a sustentabilidade do equilíbrio desse sistema. Assim, o que o tarifaço faz é colocar um fim nessa dinâmica insustentável do “New Bretton Woods” e trazer à tona a discussão sobre para qual modelo a economia global irá migrar.

Do ponto de vista do Brasil, minha avaliação é de que os efeitos podem ser positivos, principalmente para o setor exportador agro, visto que o conflito abre novas oportunidades de comércio com a própria China, com os EUA, e com outros países também afetados pela mudança da política comercial americana.

Se o efeito final de tudo isso for um mundo com menos barreiras tarifárias e mais livre do ponto de vista comercial, provavelmente teremos que revisitar os ensinamentos de David Ricardo acerca das vantagens comparativas de cada país, e sobre como a eficiência produtiva de cada player se reflete na sua competitividade, nua e crua, no mercado global. 

Acredito que ainda estamos muito longe desse cenário, mas, no limite, isso é um dos cenários possíveis a médio/longo prazo.

Não obstante, o que emerge até o momento, de forma bastante inimaginável, inusitada e curiosa, é ver o governo americano, presidido pelo Partido Republicano, utilizar medidas que lembram muito a esquerda latino-americana dos anos 1970, que ficou notabilizada pela defesa do modelo de substituição de importações como estratégia de desenvolvimento econômico. Deu no que deu.

Os discursos do Presidente Trump defendendo a indústria local, o emprego local e as tarifas comerciais parecem saídos dos livros de Celso Furtado e Raul Prebisch, ou dos manuais da Cepal. 

Como disse o astrônomo Carl Sagan, ao se referir à escala do tempo, um evento inimaginável em uma centena de anos talvez seja inevitável em um milhão de anos…

Edison Ticle é CFO da Minerva Foods.