Há praticamente dois anos, tivemos a última semana “normal” de nossas vidas. De lá pra cá, provou-se atual a frase dita por Lênin: “Há décadas em que nada acontece, e há semanas em que décadas acontecem.”

Muito mais importante que qualquer impacto econômico do conflito na Ucrânia é a enorme tragédia humanitária e uma crise migratória que já vitimou mais de 2,5 milhões de pessoas.

Ainda há muitas incertezas pairando no ar, principalmente sobre o futuro político da Rússia e sua relação com a China. Mas uma das poucas certezas é que os preços de matérias primas ficarão elevados por um longo período de tempo. A Rússia é o maior produtor de commodities do planeta: óleo e gás, metais e produtos agrícolas. Soma-se a isso o fato de que a Ucrânia é um dos 10 maiores produtores globais de trigo.

A situação é tão dramática que o presidente ucraniano Zelensky apelou para que a safra de trigo do país fosse plantada independentemente da guerra. Emmanuel Macron afirmou que a alta nos preços de alimentos pode provocar uma onda de fome em países mais pobres, e nunca é demais lembrar que essa foi a causa da primavera árabe.

Apesar de menos falado, outro consenso é a tendência de reversão da globalização. Ela já havia se iniciado com a pandemia, mas com foco principalmente em cadeias de produção. Mas podemos estar assistindo ao início de uma nova ordem financeira global, com o mundo dividido entre dois sistemas de pagamentos e dois sistemas de moedas de reservas: um ocidental, com o eixo dólar-euro, e outro comandado pela China.

O mundo ainda é movido a petróleo e um dos principais motivos pelos quais o dólar é a moeda global de reserva é que a commodity só pode ser negociada e paga em dólares. Ou seja, dólar e petróleo são como gêmeos siameses.

Não é segredo que a China está tentando criar uma nova arquitetura financeira, basicamente com o objetivo de tornar o Yuan a moeda de reserva da Ásia.

Para isso, é essencial que Arábia Saudita e outros grandes produtores aceitem o Yuan como pagamento pelo petróleo. Nesse sentido, foi dada pouca atenção ao fato de que a Arábia Saudita e os Emirados Árabes, tradicionais aliados americanos, mantiveram certa distância e decidiram não seguir as sanções contra a Rússia.

Mesmo antes da guerra, China, Rússia e Irã vinham trabalhando para desafiar o domínio do dólar nas transações com petróleo, mas o sucesso da iniciativa depende do apoio dos principais produtores árabes. O acúmulo por parte da China de reservas em ouro visa exatamente criar um mercado líquido em Hong Kong, onde produtores de petróleo poderiam trocar seu Yuans pelo metal.

Sanções são uma forma antiga de guerra econômica, mas os EUA passaram a usar o dólar como arma financeira principalmente após os atentados de 11 de setembro. O sigilo bancário em vários paraísos fiscais começou a morrer no momento em que o primeiro avião se chocou contra o World Trade Center.

Mas agora o uso de sanções financeiras foi levado a outro patamar, tendo sido aplicado de forma sem precedentes contra a Rússia, segundo maior produtor e exportador mundial de petróleo. A perspectiva de completo isolamento financeiro da Rússia já deu seu recado através dos preços do petróleo, que na semana passada chegaram a negociar acima de US$ 130, em comparação aos US$ 70 há apenas poucos meses. Lembrando: sempre que o petróleo sobe 100% em um período de 12 meses acontece uma recessão mundial. Será diferente desta vez?

Independentemente da justificativa moral para sanções, quanto mais relevante for o país alvo, elas não apenas começam a perder efetividade, mas também geram um forte efeito-bumerangue. Não há dúvida de que o isolamento financeiro da Rússia deixará os mercados de commodities em desequilíbrio por bastante tempo. Há ainda o impacto financeiro e chamadas de margem em função das bruscas variações de preços.

Os EUA deixaram claro que não tolerarão que países ajudem a Rússia a burlar as sanções, lembrando a frase dita por George W. Bush ao inaugurar a guerra ao terror: “ou vocês estão conosco, ou estão contra nós”.

Mas o diabo continua morando nos detalhes.

Os EUA se importarão caso a China continue comprando petróleo russo? Isso será considerado uma ajuda à Rússia? A Índia provavelmente não seguirá as sanções e está desenvolvendo um mecanismo para comprar petróleo russo fora da esfera do dólar. De que forma ela seria eventualmente punida? A semana passada mostrou que não é tão simples extrair mais petróleo do Irã ou da Venezuela, e esse é um ativo que infelizmente o Fed não consegue imprimir.

Em primeiro lugar, caso a Rússia seja completamente alijada do mercado global de hidrocarbonetos, não parece exagero imaginarmos o Brent superando US$ 300. Mas eventuais sanções financeiras contra a China teriam um efeito muito mais devastador.

O congelamento pelos EUA de parte das reservas russas trouxe a especulação de que o mesmo possa eventualmente acontecer com os US$ 3 trilhões de ativos chineses em títulos americanos. O nível de interdependência e até mesmo simbiose entre as duas maiores economias do mundo nos diz que caso essa possibilidade seja sequer considerada, “all bets are off”. O colapso nos mercados faria 2008 parecer uma brincadeira.

Ainda existem muito mais dúvidas do que certezas sobre esse trágico episódio. Muito dependerá do futuro político da Rússia e de sua relação com a China. Mas é possível que o uso de sanções financeiras tenha atingido seu ápice e estejamos caminhando para uma nova arquitetura financeira global.

Roberto A. Attuch Jr. tem mais de 25 anos de experiência no mercado de renda variável na América Latina, foi diretor do Credit Suisse e do Barclays e fundou a OHMRESEARCH.