O recente ajuste dos estoques promovido pelo Grupo Mateus lança uma sombra relevante sobre a qualidade da informação contábil reportada ao mercado e, mais do que isso, sobre todo o processo de governança corporativa da companhia.
O que representam os estoques? Estoques não são apenas um item operacional. Eles representam uma das engrenagens centrais das empresas de varejo. Estão conectados à qualidade da gestão do capital de giro, relacionando-se diretamente com a produtividade e eficiência da operação, e ainda, na geração efetiva de caixa e lucratividade. Quando este pilar é reclassificado de forma retroativa, com impacto bilionário, e ainda sem a devida clareza imediata sobre os reflexos históricos no resultado, a credibilidade da empresa é inevitavelmente colocada em xeque.

No varejo alimentar, em especial, o estoque é o elo crítico entre compra, venda, margem e lucratividade. Um erro, ou uma reclassificação posterior nesse ativo não distorce apenas o balanço. Ele contamina e deturpa a leitura do capital de giro, do capital investido, do lucro bruto, do lucro operacional, do NOPAT (LOLIR – Lucro Operacional Líquido do I.R.) e, em última instância, afeta a eficiência econômica do negócio medida pelo ROIC, impactando a Criação de Valor-VEC.
Portanto, não se trata de um simples ajuste meramente técnico. Trata-se de uma redefinição profunda da performance econômica da companhia.
Relevante redução no valor dos estoques: Conforme publicado, com os ajustes de R$ 1,013 bilhão, o valor original dos estoques de R$ 5,088 bilhões reduziu para R$ 4,074 bilhões, uma queda de 20% sobre o número originalmente reportado para o ano de 2023.
Com a redução dos estoques, o ativo circulante que era de R$ 10,399 bilhões foi para R$ 9,385 bilhões. Essa redução, por si só, já é expressiva, mas seu verdadeiro impacto aparece quando se observa a contaminação direta sobre o Capital de Giro Operacional Líquido (CGOL), que era de R$ 5,359 bilhões e que caiu para R$ 4,345 bilhões, uma retração de 19%.
Capital Investido: Esse ajuste também afetou o valor do Capital Investido, que encolheu de R$ 11,240 bilhões para R$ 10,226 bilhões, ou seja, uma redução de 9%. Esse movimento é especialmente sensível do ponto de vista da análise de eficiência econômica, porque o capital investido representa a base sobre a qual a empresa precisa gerar retorno econômico (ROIC) superior ao custo de capital, para então criar valor.
Com o ajuste, fica claro que o Mateus gerava um terço do lucro operacional declarado. Na DRE, o impacto do ajuste nos estoques demonstra um colapso contundente, dado que a empresa ainda não republicou os valores reclassificados em sua DRE ajustada de 2023. O valor dos custos dos produtos vendidos de R$ 20,961 bilhões aumentou com o ajuste 5% indo para R$ 21,974 bilhões. O lucro bruto caiu 17% de R$ 5,813 bilhões para R$ 4,799 bilhões, fato relevante que a margem bruta de 2023 não tinha captado.
Esse efeito se amplifica de forma devastadora no lucro operacional, que com o ajuste desaba de R$ 1,683 bilhão para apenas R$ 669 milhões, numa expressiva queda de 60%. Trata-se de uma destruição direta da capacidade operacional de geração de resultado. O mesmo ocorre com o NOPAT, que recua igualmente 60%, passando de R$ 1,506 bilhão para R$ 599 milhões.
Conclusão: a empresa era menos eficiente do que se acreditava.
Redução devastadora do ROIC: Com a queda do NOPAT e a diminuição do valor do Capital Investido, o ROIC despenca de 14,9% para 6,3%, numa contração de nada menos que 58%.
O ROIC anterior, próximo aos 15% sugeria, à primeira vista, uma companhia com retorno marginalmente acima do custo de capital. Entretanto, um ROIC de 6,3%, por outro lado, coloca o Grupo Mateus bem abaixo de seu WACC. Na prática, isso significa que aquilo que antes parecia criação de valor se revela um desempenho econômico de destruição de valor.
Destruição de valor: O indicador que melhor demonstra essa ruptura é dado pela metodologia de Criação de Valor-VEC. Antes positivo em R$ 193 milhões, o VEC passa, após os ajustes, para um valor negativo de R$ 697 milhões, indicando uma impressionante deterioração de 461%. Não se trata de um ajuste irrelevante. Apenas um movimento contábil que é representado pelo ajuste nos estoques, denuncia uma completa inversão da narrativa econômica.
Ciclo financeiro invertido: calculando o ciclo financeiro em dias, evidencia-se uma distorção relevante do Grupo Mateus, quando comparado aos seus principais peers: o ciclo financeiro negativo do Assaí, Carrefour e do Pão de Açúcar estão na faixa de -12 à -23 dias, ou seja, eles conseguem ser bancados na operação. Já o Grupo Mateus apresenta um elevado ciclo positivo de 64 dias, o que representa uma expressiva necessidade de bancar financeiramente a operação.
A raiz dessa inversão está na dinâmica entre estoques e fornecedores. Nos peers, a alta rotação de estoques combinada com prazos maiores de pagamento de fornecedores, cria um efeito de financiamento natural da operação, ou seja, essas empresas são bancadas. Já no Grupo Mateus ocorre o oposto: os estoques permanecem imobilizados por 61 dias, enquanto o prazo com fornecedores é de 37 dias. Esses índices demonstram incapacidade para sustentar as transações. Como resultado, a gestão do capital de giro está invertida, fato que transforma a operação, em vez de geradora, em consumidora de caixa.
Os ajustes dos estoques do Grupo Mateus não podem ser tratados como um evento técnico isolado. Eles carregam implicações profundas sobre a leitura histórica da rentabilidade, da eficiência operacional, da liquidez e do nível de retorno e criação de valor. Ao atingir diretamente o estoque, item primordial do capital de giro das empresas de varejo, o ajuste contaminou todo o conjunto dos indicadores econômico-financeiros, alterando todas as análises da empresa.
Mais do que revisar números, é provável que o mercado reanalisará as DFs e explicações. A solidez financeira, a eficiência operacional e a capacidade de geração de valor econômico VEC que sustentavam parte da confiança dos investidores em 2023, foram desestruturadas por uma única e importante linha, a dos estoques.
Dada a importância dos estoques na gestão do capital de giro, especialmente no varejo, as consequências de um erro grave não aparecem somente nos registros contábeis. De forma ampla, ela afeta todos os processos, controles, governança corporativa e credibilidade, diminuindo o valor da empresa no mercado.
Oscar Malvessi é especialista no tema “criação de valor”, autor do livro “Como criar Valor na sua Empresa-método VEC”. Foi professor de Finanças da EAESP FGV por mais de 30 anos e hoje leciona nos cursos executivos da FGV.











