Os tempos de guerra desafiam os marcos legais vigentes e certas interpretações jurídicas, normalmente pensadas e construídas em tempos de paz. Na guerra da Ucrânia não há de ser diferente, e alguns pontos já despertam a atenção.

Não se vai aqui tratar da guerra propriamente dita, na qual o povo da Ucrânia, pegando emprestada a expressão de Churchill, vem demonstrando heroicamente viver a sua ‘finest hour’. De outro lado, infelizmente, se constata mais uma vez o acerto da frase atribuída a Einstein de que a estupidez humana é infinita. O governo russo, não satisfeito com a experiência bárbara do passado da fome vermelha (Holodomor), impingida por Stalin e tão bem retratada no livro de Anne Applebaum, volta-se novamente contra a Ucrânia.

Uma das características desta guerra, até agora, é que a reação do chamado Ocidente tem se destacado no campo econômico e não no uso das forças armadas.

E isto, nos dias de hoje, não é pouco, porque a guerra se dá em um momento de intensa globalização financeira e comercial, o que torna incomparável o alcance atual destas sanções com embargos e outras sanções econômicas do passado e, claro, com consequência para ambos os lados.

Mas o que talvez seja a maior novidade no campo econômico, para além das sanções comerciais e financeiras impostas pelos Estados, é a constatação de que diversas empresas voluntariamente — e não por imposição legal — têm aderido a este conceito e tomado elas próprias medidas como o encerramento de atividades na Rússia, a não prestação de serviços ou a cessação de atividades comerciais.

São medidas corajosas e que podem até mesmo comprometer o resultado dessas empresas, ao menos imediatamente, seja pela diminuição de suas atividades com a Rússia que podem ser fonte importante de receita, seja por atrair a ira do governo russo, que já ameaça revidar e retaliar com expropriação e outras medidas severas.

Sociólogos, economistas, juristas e outros estudiosos dedicam-se, não é de hoje, a estudar o fenômeno da chamada macroempresa, com destaque para as multinacionais, cujo poder econômico é muitas vezes superior ao de certos Estados. Portanto, não se pode subestimar a importância deste fenômeno da adesão das empresas a este movimento, sobretudo em um ambiente de forte globalização, hiperglobalização para alguns, comercial e financeira.

Mas ao ver tudo isto, imediatamente lembrei-me do Caso Fruehauf, julgado pela Corte de Apelação de Paris em 1965, e que no passado ganhou notoriedade.

A Fruehauf-France era uma sociedade constituída na França e cujo objeto era a produção e exportação de vagões. O principal cliente da companhia era a República Popular da China. A sociedade era controlada por acionistas norte-americanos. Em razão do Trade with the Enemy Act, editado nos Estados Unidos, os controladores determinaram que a sociedade interrompesse um contrato de exportação de equipamentos para a China.

Os acionistas minoritários franceses ingressaram com uma ação, arguindo que a França não tinha qualquer restrição com relação ao comércio com a China, de sorte que a interrupção seria um ato abusivo do controlador e dos administradores que causaria prejuízo à sociedade, lesando seus interesses sociais. O Tribunal Francês acolheu os argumentos dos minoritários.

De fora, é difícil avaliar o nível de reflexão feita pelos acionistas e administradores que hoje tomam estas decisões, que certamente terão argumentos válidos para a sua adoção do ponto de vista social, humano e até empresarial, que não cabem aqui desenvolver. Mas é preciso saber que não estão isentos da possiblidade de questionamentos, como se viu no caso francês.

Não há dúvida de que o mundo mudou muito e o espírito do tempo é outro, inclusive dos investidores e consumidores, com maior atenção à responsabilidade social da empresa e mesmo à empresa cidadã, mais humanizada, conceitos aguçados durante a pandemia.

É difícil antecipar qual seria a conclusão de uma discussão desta ordem nos dias atuais, que corre o risco de estar démodé, especialmente a depender do posicionamento individual de cada Estado (se a favor, contra ou neutro).

Seria este novo posicionamento das empresas e do mercado fruto do fenômeno do ESG em uma nova dimensão? Parece cedo para saber, mas se for certa a afirmação de Susan Sontag, de que a guerra é uma coisa essencialmente masculina, seria mesmo muito bem-vindo.

Luiz Antonio de Sampaio Campos é sócio-fundador do BMA Advogados.