A operação de crédito chamada “parcelado sem juros no cartão”, cuja popularidade é crescente, está sob intensa crítica da Febraban. Por outro lado, tem defensores aguerridos entre os lojistas e as fintechs, além dos usuários de cartão, obviamente.
Dizer que a operação não tem juros é uma afirmação no mínimo incompleta. Não chega a ser falsa no sentido jurídico: o produto do número de prestações pelo seu valor realmente é igual ao preço de compra. Mas esses juros invisíveis estão embutidos no preço de venda. As compras feitas à vista, pelo mesmo preço, subsidiam as compras a prazo. Por isso, não é incomum, no pequeno comércio, se obterem descontos sobre o preço à vista: os juros “inexistentes” podem se transformar em descontos atrativos. Em grandes redes, essa prática é rara.
Muito se diz que o parcelado sem juros no cartão é o sucessor do cheque pré-datado, que desapareceu com a massificação dos cartões de crédito. Essa semelhança é ilusória. São duas operações completamente diferentes. No mecanismo do pré-datado, havia o risco de calote. Caso o comprador não honrasse os cheques emitidos, o lojista ficaria com o prejuízo. Já no parcelado sem juros, o risco de crédito deixa de ser preocupação do lojista, sendo transferido para o banco emissor do cartão.
O mercado de cartão de crédito é formado por um complexo de agentes e relações chamado “arranjos de pagamento” que, operando em conjunto e sintonia, permitem que os consumidores paguem a crédito sem que o comerciante ou prestador de serviços corra o risco de inadimplência. E isso tudo sem preencher cadastros. Na verdade, o comerciante não se importa se a compra será paga pelo comprador. Ele irá receber seu crédito de qualquer maneira. O banco emissor assume esse risco. Tudo a anos-luz de quando as lojas tinham “departamentos de crediário”.
No comando do sistema estão as bandeiras (Visa, Elo, Master e outras), cuja função é combinar infraestruturas e protocolos que permitem as interações entre: a) lojistas; b) os emissores de cartão (bancos e fintechs), que são efetivamente os concedente de crédito para os usuários e responsáveis por absorver eventual inadimplência; c) os adquirentes, que são os provedores das maquininhas (Cielo, Rede, GetNet, Stone e outras), responsáveis por repassar os valores que recebem dos bancos emissores aos lojistas, geralmente em trinta dias; e d) os usuários, que recebem um limite de crédito a ser usado em qualquer estabelecimento participante do arranjo.
Os dias de prazo dados aos usuários para pagar suas compras (reunidas em uma única fatura mensal) é correspondente – mas não exatamente igual – ao prazo de trinta dias que o vendedor deve aguardar para receber dos adquirentes.
Uma taxa de desconto (MDR, na sigla em inglês) é cobrada do lojista, equivalente a um percentual da venda. Os adquirentes (maquininhas) retêm esse valor, que pode variar de acordo com o porte e o setor econômico do vendedor. A MDR é dividida entre os diversos agentes do arranjo, mas boa parte da MDR vai para o emissor do cartão (bancos e fintechs), na chamada taxa de intercâmbio. Assim, com uma MDR de 3%, o lojista sabe que receberá 97 reais após trinta dias, em uma venda de 100 reais.
A tarifa de intercâmbio é usada pelo emissor, em parte, para dar brindes ao usuário, como milhas e cashback, mas, ainda assim, compõe parcela relevante de suas receitas.
A tarifa não é a única receita dos agentes envolvidos. Os emissores (bancos e fintechs) obtêm receitas de mensalidades – que a competição tem tornado menos comuns – e, principalmente, com os juros cobrados dos usuários que deixam de pagar a integralidade da fatura.
Nesse caso, começam a incidir os juros do crédito rotativo sobre o saldo não pago no dia do vencimento da fatura. Essa operação só pode durar um mês. Depois, o banco emissor deve converter a operação em outra que seja mais vantajosa ao usuário.
Os adquirentes (maquininhas) obtêm receitas também com aluguel dos equipamentos e, principalmente, com juros cobrados na antecipação dos valores que o lojista só receberia em trinta dias (ou sessenta, noventa e assim por diante, no parcelado sem juros). Se o lojista quiser receber de imediato as suas vendas, o adquirente adianta esses recursos. O comerciante, nesse caso, paga os juros relativos a esse empréstimo, além da MDR.
Assim, o lojista não corre risco de calote. Só tem de se preocupar em fixar um preço à vista que não afugente os clientes que prefiram comprar à vista. Para fazer essa estimativa, tem de saber de antemão qual o custo que terá para financiar essas compras. E ele já tem essa informação facilmente: é a taxa cobrada pelo adquirente para transformar imediatamente em caixa todo o saldo das prestações que tem a receber. Em média, segundo dados do Banco Central, essa taxa denominada “adiantamento de recebíveis de cartões de crédito” estava em 14,4% ao ano, em outubro de 2023.
Quando o comerciante adianta o recebimento de dez parcelas de 10 reais, à taxa de 14,4% ao ano, em uma venda de 100 reais no parcelado sem juros, isso lhe custa 5,93 reais – valor que será descontado além da MDR e que ele deve compensar, ao menos em parte, no preço à vista. A próxima simulação dá uma ideia de como o parcelado sem juros é mais vantajoso para lojistas e compradores.
Ainda segundo dados do Banco Central, quando o consumidor recorre ao rotativo do cartão, fora do parcelado sem juros, a taxa é de 432% ao ano por trinta dias, e de 195,6% ao ano, nos períodos subsequentes. Para um cliente que se financia direto no cartão, sem utilizar o parcelado sem juros, ele teria de pagar 16,69 reais por mês, durante os mesmos dez meses, para que a dívida fosse quitada.
Para o usuário, trata-se de escolher entre o parcelado sem juros e o financiamento direto no cartão, que correspondem a prestações de 10,00 ou 16,32, respectivamente. Qual você escolheria?
Diante dessa discrepância, a pergunta é: por que duas alternativas de financiamento para o mesmo cliente e risco idêntico podem gerar custos (para o usuário) e receitas (para os emissores) tão díspares?
O parcelado sem juros permite ao lojista repassar os juros menores das operações de recebíveis de cartão – que são de 14,4% ao ano – para consumidores que, sem essa possibilidade, enfrentariam taxas que vão de 196% a 432%, muito mais pesadas. Ele pode repassar integralmente essa vantagem porque não há risco de inadimplência. E o faz porque trabalha em um ambiente de concorrência acirrada no varejo. Se não o fizer, perde clientela. Dada a diferença de custo para o comprador entre as duas alternativas, o crédito rotativo dos bancos perde mercado: o crédito rotativo cede lugar ao “parcelado sem juros” no cartão.
A Febraban alega que a inadimplência do parcelado sem juros é muito maior do que a das demais operações. A anomalia das taxas cobradas dos usuários de cartão se explicaria, portanto, por uma falha na precificação do risco, que seria específico – e maior – nas operações do parcelado sem juros. Segundo o argumento, quem paga usando o rotativo estaria subsidiando os usuários que optam pelo parcelado sem juros.
Esse argumento tem dois problemas principais: primeiro, nas operações em que, de fato, há inadimplência do usuário, as taxas que passam a ser aplicadas pelo emissor são exatamente aquelas do crédito rotativo, nos primeiros 30 dias, e depois as da opção mais vantajosa. Estamos falando de 432% e, na sequência, 196%. Quando o risco se materializa, o emissor passa a ser remunerado exatamente pelas mesmas taxas que aplica às demais concessões de crédito pelo cartão. Como são taxas astronômicas em relação à Selic, é difícil imaginar que elas não reflitam, com boa margem, a expectativa de inadimplência, dado perfil médio dos clientes.
O segundo problema é que os bancos não costumam ter políticas refinadas de diferenciação de taxas para clientes com distintos perfis de risco. Não importa se você é cliente há dez anos com excelente histórico de crédito ou se acabou de receber seu cartão, as taxas de juros no rotativo e as subsequentes não são influenciadas por esses diferentes perfis.
De todo modo, é possível extrair do argumento da Febraban um aspecto relevante: na teoria econômica, é incontroverso que financiamentos com prazos maiores tendem a ter riscos maiores. Dito de outra maneira: a probabilidade de inadimplência de um empréstimo por 30 dias no rotativo do cartão é bem inferior à de um empréstimo por 300 dias no parcelamento do cartão, ainda que feito para o mesmo cliente, no mesmo momento e com idênticos níveis de garantia.
Existe controvérsia sobre se há mesmo diferença relevante na inadimplência entre operações a serem pagas em 30 dias e as do parcelado sem juros. A Abranet, que representa fintechs, afirma que não há. Mas, considerando que haja mesmo essa diferença, o problema estaria em não haver discriminação no risco das operações mais longas em relação às mais curtas.
O risco em operações de crédito pode ser tratado com três instrumentos principais: limitação do volume de crédito concedido a um tomador específico; a calibragem de uma taxa de juros suficiente para cobrir a inadimplência esperada em um grupo de devedores; e o oferecimento de garantias pelos devedores. Os dois primeiros mecanismos de mitigação de risco estão sempre presentes. A concessão do crédito deve sempre guardar relação com a capacidade de pagamento.
Considerando o próprio argumento da Febraban, de que existiria um risco considerável nas operações de parcelado sem juros, esses prazos podem ser usados como ponderadores do risco de cada cliente específico. Assim, o limite de crédito poderia ser flexível, a depender dos prazos de pagamento de cada compra contratada.
Quanto maior o prazo de pagamento da parcela, mais ela reduziria o limite originalmente concedido pelo emissor ao usuário. Os bancos poderiam adotar tabelas que relacionassem o prazo de cada parcela a coeficientes crescentes de risco de acordo com o prazo. Por exemplo, uma parcela de 50 reais a ser paga em 10 meses poderia ter um coeficiente igual a 2, de modo que reduziria o limite disponível em R$ 100.
A rigor, essa ideia corresponderia a uma explicitação do que já existe na regulação do setor. A Resolução do Banco Central nº 96, de 2021, prevê que os bancos emissores possam reduzir os limites de crédito, sem aviso prévio, “caso seja verificada deterioração do perfil de risco de crédito do titular da conta, conforme critérios definidos na política de gerenciamento do risco de crédito”.
Esse aperfeiçoamento normativo não só daria segurança para os bancos aplicarem critérios de risco diferenciados segundo o prazo das parcelas, como permitiria aos usuários comparar as diversas tabelas e saber, de antemão, qual a redução do valor do seu limite original, a depender dos prazos de seus parcelamentos.
Os bancos teriam à sua disposição um mecanismo capaz de controlar seu risco não apenas por taxas, mas por volume de concessão, de acordo com os diferentes prazos dos compromissos assumidos por seus usuários de cartão. Isso responderia à crítica de que o parcelado gera mais riscos – não corretamente precificados – por ter prazo mais longo.
Esse mecanismo automaticamente reduziria o risco agregado das carteiras, uma vez que a proporção de operações com maior probabilidade de inadimplência seria sempre reduzida em relação à situação atual, que, conforme a Febraban, gera anomalia na taxa de juros do rotativo do cartão de crédito e obriga os usuários dessa sistemática a subsidiarem os que usam o parcelado sem juros.
Ao incorporar o prazo das prestações como fator de risco, essa proposta fica a meio caminho de simplesmente acabar com o parcelado sem juros ou manter tudo como está. O parcelado sem juros não pode acabar: ele gera mais eficiência e mais competição.
Marcos Köhler é economista pela UFMG e consultor legislativo no Senado Federal.