A pergunta que mais ouço nos últimos dias é: “qual o valor total do aumento de gastos gerado pela PEC da Transição aprovada no Senado?”

A resposta honesta é: nem eu nem o Tesouro Nacional sabemos.

Ao lado de itens com valores explícitos, há outros que são portas abertas para o aumento de despesa, sem que se conheça o real impacto.

Comecemos pelo que é conhecido:

• R$ 145 bilhões de aumento explícito no teto;
• R$ 23 bilhões para aumento de investimentos a partir de um suposto “excesso de arrecadação”;
• R$ 24 bilhões para aumento de investimento usando dinheiro do PIS/PASEP, que deveria ter sido sacado pelos trabalhadores titulares das contas, mas que foram lá esquecidos.

Isso soma R$ 192 bilhões. Considerando que o item “c” já indica a fonte de financiamento, o déficit aumentaria em R$ 168 bilhões.  Já é um valor excessivo. Quem faz contas minimamente confiáveis, no mercado e na academia, já mostrou que um aumento de déficit público superior a R$ 90 bilhões vai gerar forte aumento da dívida, dos juros e da inflação, derrubando o crescimento.

Para fechar as contas sem perder o controle sobre o crescimento da dívida, ficaremos à mercê de uma nova surpresa do lado da arrecadação, como ocorreu em 2022 em decorrência do alto preço internacional das commodities, em especial o petróleo.

Trata-se de uma variável que não controlamos.

É como se um pai de família dissesse que tudo vai dar certo, pois hoje à noite ele vai ganhar uma bolada no bingo.

Aos números conhecidos agregam-se algumas categorias de despesas que foram retiradas do teto e que, como afirmado acima, nem eu nem o Tesouro sabemos em quanto vai ficar a conta.

Vejamos as três mais preocupantes:

“I – despesas custeadas com recursos oriundos de operações financeiras com organismos multilaterais dos quais o Brasil faça parte, destinados a financiar ou garantir projetos de investimento em infraestrutura, constantes de plano integrado de transportes e considerados prioritários por órgão colegiado do setor;”

O novo e capitalizado Banco dos Brics tem dezenas de bilhões de reais disponíveis para emprestar. Somando o cacife de Banco Mundial e BID, não seria exagero falar em abertura de espaço na casa de R$ 30 a R$ 40 bilhões. Se bancos privados resolverem fazer um pool para emprestar ao Brasil, utilizando os organismos internacionais como veículos, a conta sobe ainda mais. É um convite ao pé na jaca, financiado por dívida externa.

O segundo dispositivo que preocupa é aquele que começou com a ideia de permitir às Universidades Federais gastarem fora do teto os recursos obtidos mediante convênios, doações ou receitas próprias. Algo estimado em torno de R$ 0,9 bilhão.

No entanto, ao longo da tramitação o conceito de entidades beneficiadas foi ampliado para “instituições científicas, tecnológicas e de inovação (ICT)”. De acordo com a Lei 13.243/2016, as ICT são definidas como: órgão ou entidade da administração pública direta ou indireta ou pessoa jurídica de direito privado sem fins lucrativos legalmente constituída sob as leis brasileiras, com sede e foro no País, que inclua em sua missão institucional ou em seu objetivo social ou estatutário a pesquisa básica ou aplicada de caráter científico ou tecnológico ou o desenvolvimento de novos produtos, serviços ou processos;

Isso ampliou a possibilidade de fazer gastos fora do teto com transferências até mesmo para instituições privadas de pesquisa. A princípio haveria uma trava, pois os gastos fora do teto se restringiriam àqueles financiados “por receitas próprias, de doações ou de convênios, contratos ou outras fontes, celebrados com demais entes da Federação ou entidades privadas.”

Porém, no país da contabilidade criativa, onde já se fez capitalização de uma empresa estatal para que ela comprasse navios e os emprestasse à Marinha, tudo para escapar do teto, não será difícil encontrar triangulações de recursos e reclassificações de verbas orçamentárias para se conseguir uns bilhõezinhos fora do teto.

No mesmo espírito, há um terceiro dispositivo que estabelece outros gastos que ficam fora do teto:

“IV – despesas custeadas por recursos oriundos de transferências dos demais entes da Federação para a União destinados à execução direta de obras e serviços de engenharia.”

A justificativa, aqui, é que estados e municípios pagariam à União para que o Exército fizesse obras de pavimentação de estradas. Se fosse só isso, não precisaria tirar do teto, pois os valores são pouco significativos. Mas que tal mais uma contabilidade criativa?

Por exemplo, os estados e municípios transferem dinheiro para a União para custear obras em estradas estaduais e, numa negociação em paralelo, a União perdoa dívida dos estados e municípios.

A PEC também propõe que, uma vez aprovada uma nova regra fiscal que substitua o teto, este será completamente revogado. Isso significa que acabará o limite específico de despesas para os poderes e órgãos autônomos (Judiciário, Legislativo, Ministério Público, TCU e Defensoria Pública da União). Eles poderão voltar a aumentar as despesas próprias e jogar a conta para todos pagarem. Atualmente, ficam restritos ao limite próprio de despesa.

Também retornará a vinculação da despesa mínima de saúde, educação e emendas parlamentares à flutuação da receita. A despesa ficará ainda mais pró-cíclica. Nos momentos de ganho de receita, será obrigatório gastar mais e, nas recessões, serão necessários cortes. Ineficiência e mais desequilíbrio estrutural nas contas.

A PEC também aumenta gastos já em 2022, uma vez que o tal “excesso de arrecadação” poderá ser usado já este ano, fazendo a alegria de parlamentares que têm emendas contingenciadas. E por falar em emendas, uma condição para aprovação da PEC é que não se mexa nas inacreditáveis e inaceitáveis emendas de relator ao orçamento…

Os problemas não acabam com a PEC da Transição. Tão logo ela seja votada, o Congresso se concentrará na votação do orçamento. O seu relator não faz segredo de que usará um índice de inflação superestimando para corrigir o valor do teto de gastos. Serão outros R$ 22 bilhões acrescidos à despesa.

Pelos valores conhecidos e as portas abertas ao desconhecido, essa PEC não terá custo inferior a R$ 200 bilhões. Ela se assemelha a um caminhão descendo ladeira – e com problema no freio.

Condições políticas, institucionais, jurídicas e federativas construíram um regime fiscal pró-gasto e pró-déficit. Tudo conspira contra o equilíbrio fiscal, desde estados que se endividam e empurram o custo para a União, até decisões do Supremo sem racionalidade econômica que criam esqueletos fiscais, passando pela sede parlamentar por emendas orçamentárias.

Os únicos atores políticos que têm incentivos a equilibrar as contas são o Presidente da República e o Ministro da Fazenda.

Com o ponto de partida que estamos assistindo, não há por que esperar uma nova regra fiscal que seja capaz de segurar o caminhão ladeira abaixo. Oxalá eu esteja errado e a nova equipe econômica encontre uma daquelas áreas de escape que existem nas rodovias, com brita e argila expandida, onde os motoristas sem freio podem entrar e evitar o desastre.

Marcos Mendes é pesquisador associado do Insper e organizador do livro “Para não esquecer: políticas públicas que empobrecem o Brasil”.