Logo nos primeiros minutos da minissérie “Jeffrey Epstein: Filthy Rich”, que estreou há pouco no Netflix, uma das entrevistadas faz uso de uma imagem muito cara à cultura norte-americana para esboçar um perfil do protagonista da história: “Epstein foi uma figura misteriosa no estilo de Gatsby”, diz ela, referindo-se ao personagem que dá título ao romance de F. Scott Fitzgerald, O Grande Gatsby. 

No romance de Fitzgerald, o protagonista, Jay Gatsby, é um bilionário que participa do jet set de Long Island como um anfitrião generoso, promovendo festas onde vão todos os que querem ver e ser vistos. Gatsby, no entanto, jamais é totalmente aceito, principalmente porque ninguém sabe muito bem a origem de seu dinheiro. Seu final é trágico: de um lado, porque termina a vida abandonado; de outro, porque paga por um crime que não cometeu.

Jeffrey Epstein também era alvo do mesmo tipo de desconfiança, mas não foi isso que o levou ao suicídio em agosto do ano passado. 

Como figura pública, Epstein foi um financista que, nos anos 80, construiu seu patrimônio através de esquemas fraudulentos; depois, entre 1990 e 2000, cuidou dos investimentos de Leslie Wexner, o bilionário dono de marcas como Victoria Secret, Abercrombie & Fitch, entre outras. 

Mas, na vida privada, Epstein foi o predador que estabeleceu uma rede de prostituição infantil e abuso sexual nos Estados Unidos e no exterior: de Palm Beach a Paris, passando por Nova York, Londres, Novo México e Ilhas Virgens.

Dirigida por Lisa Bryant (e com produção executiva do escritor James Patterson), a série de quatro capítulos detalha as ações de Epstein ao extremo, a ponto de algumas passagens incomodarem o espectador. É coisa forte.

Não, não há qualquer cena de violência explícita, mas os depoimentos das muitas vítimas são, a um só tempo, devastadores e desalentadores. E seu sentimento de impotência só faz aumentar à medida que as ações da polícia local, do FBI e da Justiça norte-americana são frustradas pela defesa de Epstein, que consegue sempre os melhores acordos e uma saída honrosa para quem merecia punição pelos crimes que cometeu em sequência.

Em que pese essa sensação de mal-estar, o documentário dá voz às vítimas e explicita o expediente adotado por Epstein para atrair tantas garotas jovens: ele preferia sempre quem tivesse algum histórico de abuso ou cuja origem remontava à situação de penúria econômica e social. Ardiloso, Epstein prometia oportunidades de trabalho, de estudos; uma vida melhor, enfim. Tudo uma armadilha.

A minissérie mostra também alguns de seus cúmplices, figuras que ajudaram Epstein ao longo dos anos. Destaque aqui para Ghislaine Maxwell, a britânica que se apresentava como namorada do financista, mas que, na verdade, era sua parceira no crime. 

Além dos acordos com advogados (entre eles Alan Dershowitz e Kenneth Starr, o promotor do impeachment de Bill Clinton em 1998) e de todo o dinheiro do mundo, Epstein tinha uma constelação de ‘amigos’ que incluía Donald Trump, Bill Clinton, Kevin Spacey, Chris Tucker, sem mencionar o cientista Steven Pinker e o Príncipe Andrew, o terceiro filho da Rainha Elizabeth II. Foram essas conexões que fizeram com que Epstein não ficasse isolado mesmo depois de ter sido condenado em 2008.

Como ressalta o documentário, o caso Jeffrey Epstein evidencia como o sistema de cooptação também serve para lavar reputações. Em outras palavras, fica claro que o abusador se valeu não apenas desses contatos que o alçavam à condição de celebridade, mas também da filantropia para limpar sua imagem — neste caso, as doações para a polícia e o financiamento das artes serviam para comprar a indulgência (e a conivência) da sociedade.

A partir de 2017, com a emergência do movimento #metoo, a trama de Epstein começou a ruir. Suas vítimas vieram a público novamente; desta vez, ele não conseguiu escapar. Preso em julho de 2019, não suportou a ideia de ser condenado. O suicídio foi sua última manobra.

“Vou lhe contar uma coisa sobre os muito ricos. Eles são diferentes de mim ou de você. Habituaram-se desde cedo a possuir e a usufruir, e isso modifica alguma coisa dentro deles, faz com que sejam suaves naquilo em que somos duros, cínicos quando somos esperançosos”, Fitzgerald escreveu no conto ‘O menino rico’. 

Jeffrey Epstein não foi um personagem de ficção. Na verdade, foi mais exótico que isso. Se não existisse, talvez não fosse possível inventá-lo.

Fabio Silvestre Cardoso é autor de “Capanema” e produtor do Podcast Rio Bravo.