Impiedoso guerreiro escocês que acaba de derrotar invasores noruegueses, Macbeth prepara-se para assassinar Duncan, o rei a quem até então servira com coragem e lealdade.
O regicídio abrirá caminho para que Macbeth ocupe o trono, cumprindo a profecia que ouviu de três bruxas no caminho de volta do campo de batalha. Mas ele ainda se horroriza com a traição que está prestes a cometer – a ponto de enxergar uma adaga à sua frente, como que o convidando para a ação.
Trata-se de um objeto real?, pergunta-se o personagem. Ou seria uma “adaga da mente” – um delírio criado por seu cérebro febril?
Nesta cena crucial de Macbeth, vemos o primeiro indício da loucura que levará o personagem-título à perdição. E há aqui um desafio para quem se atreve a montar a tragédia no teatro ou no cinema.
Como é comum nas peças de Shakespeare (1564-1616), o texto é econômico em orientações cênicas: não informa se o ator deve ou não empunhar uma adaga.
Quando filmou seu Macbeth em 1971, Roman Polanski recorreu a um expediente óbvio: um fantasmagórico punhal flutuava diante do futuro rei.
Agora, no estupendo A Tragédia de Macbeth (Apple TV+), a solução cenográfica é ao mesmo tempo simples e inquietante. Vê-se um objeto brilhante suspenso ao fundo do corredor que Macbeth – interpretado por Denzel Washington com intensidade e imponência – percorre lentamente, enquanto recita o monólogo sobre a adaga imaginária.
Ao fim do percurso, Macbeth descobre que o brilho vinha do prosaico puxador de uma porta – que ele abre para se encaminhar até o quarto de sua vítima.
Neste Macbeth dirigido por Joel Cohen – seu primeiro grande voo solo, sem a parceria do irmão, Ethan, com quem realizou realizou obras memoráveis como Fargo e O Grande Lebowski – pessoas e objetos são em geral desenhados com impressionante nitidez: a fotografia é em preto e branco, com contrastes expressionistas entre luz e sombra.
No entanto, não é apenas o puxador de porta que brilha como uma arma traiçoeira: tudo parece sempre coberto pela névoa da ambiguidade. Às vezes, torna-se até difícil saber se a ação se passa de dia ou à noite. É como se estivéssemos presos ao universo mental de Macbeth, que aos poucos vai se desfazendo.
Lady Macbeth, que incita o marido a levar adiante o plano para usurpar a coroa, é interpretada por Frances McDormand, mulher de Joel Coen. Ela está não menos que sublime no papel. Mesmo quando a personagem perde a razão sob o peso de seus crimes, a atriz permite que ainda vejamos lampejos de sua inteligência implacável.
O filme não tem qualquer preocupação com realismo histórico – e nisso se afasta do desastroso Macbeth: Ambição e Guerra (2015), cuja lamacenta Escócia medieval ficou com cara de um Game of Thrones falsificado. Na obra de Coen, os elementos medievais do figurino e da cenografia são todos estilizados.
O próprio Shakespeare, afinal, tomou várias liberdades com as crônicas históricas nas quais encontrou Macbeth, um rei guerreiro do século XI. É possível que o bardo tenha buscado esse enredo escocês para lisonjear o patrono de sua companhia teatral, o rei James I. O soberano que unificou as coroas da Inglaterra, da Escócia e da Irlanda julgava-se descendente de Banquo, o companheiro de armas que Macbeth trai.
Em sua fala mais famosa, Macbeth diz que a vida é apenas uma “sombra errante (…), uma história contada por um tolo, cheia de som e fúria, que nada significa.”
A sombra, o som e a fúria ganharam novos matizes e ressonâncias nas mãos de Joel Coen.