Why software is eating the world foi o título de um texto publicado 14 anos atrás por Marc Andressen, o VC da a16z, celebrando uma nova geração de empresas de tecnologia e como elas estavam revolucionando a economia – e ainda assim, vistas com reticência pelos investidores que ainda tinham na memória o estouro da bolha dos anos 2000.
“Cada vez mais, grandes empresas e indústrias estão sendo administradas por softwares e fornecidas como serviços online – de filmes a agricultura e defesa nacional,” escreveu.
É o mundo em que vivemos hoje.
Agora, entretanto, é a inteligência artificial que ameaça ‘comer’ o software – ou, mais especificamente, algumas das empresas de software que lideraram setores inteiros ao longo dos últimos anos.
Essa é a tese de um relatório da Melius Research que provocou um pequeno terremoto nas ações de empresas como Adobe e Salesforce nos últimos dias.
“Nossa tese postula que a vida tranquila de ‘software devorando o mundo’ está se desfazendo completamente para as principais empresas de SaaS,” diz o texto do analista Ben Reitzes. “Antigas queridinhas como Adobe, Atlassian e Salesforce caíram mais de 20% no acumulado do ano e continuam em queda.”
Na avaliação de Reitzes, a situação pode piorar para empresas de SaaS como Adobe, Salesforce e Workday – e a cadeia de valor pode continuar a se deslocar para os players de infraestrutura, como Microsoft e Oracle.
A Melius rebaixou a Adobe – uma ação essencial na carteira de investidores em papéis da indústria de software – de ‘neutro’ para ‘venda’.
Na avaliação de Reitzes, um dos analistas mais respeitados em Wall Street para ações de software, a ascensão da AI será para o software o que foi a transformação da nuvem em relação aos data centers próprios das companhias.
Com a nuvem, ganharam proeminência nomes como AWS e Azure, em detrimento a Dell, Hewlett-Packard e IBM. Todas essas companhias passaram por compressão de múltiplos nos últimos anos.
“Quando parecia que o pior já tinha passado, os múltiplos de P/L continuaram despencando — de algo na casa dos 20 para números de um dígito. Desde 2011, investidores em SaaS nunca tinham enfrentado uma ameaça desse porte,” diz o relatório.
Satya Nadella, o CEO da Microsoft, fez do Azure uma prioridade na empresa, e o valor de mercado explodiu. A nuvem da companhia é hoje a segunda maior do mundo, atrás apenas da AWS, da Amazon.
Em outras palavras, a Microsoft conseguiu se adaptar e transformou ‘disrupção’ em oportunidade. Mas quando isso não acontece, os investidores vão migrar para os ‘disruptores’.
Com a emergência dos agentes de AI capazes de fazer programação autônoma e personalizada, Reitzes diz que novos players estão tomando o espaço das empresas de software as a service.
O modelo de negócio de SaaS funciona como uma assinatura – em vez das velhas licenças de uso do software – o que traz um fluxo de caixa recorrente e relativamente estável e por isso atrai investidores dispostos a pagar múltiplos elevados pela ação.
No SaaS, o pagamento mensal é proporcional ao número de funcionários com acesso à assinatura.
“Acreditamos que as empresas estão cada vez mais entendendo que as ferramentas de AI podem ajudar a cortar custos com esses contratos de SaaS,” afirma o relatório. “De fato, o Opex está caindo como percentual do faturamento desde o início do boom da IA. Uma das maneiras pelas quais as empresas estão fazendo isso é reduzindo os funcionários que normalmente são os maiores consumidores de SaaS – e a Adobe pode ser impactada.”
Ainda segundo Reitzes, deverá “haver FOMO em todos os setores para cortar custos e aumentar seus estoques – SaaS é a vítima à medida que a adoção da AI acelera.”
A recomendação dele é evitar as empresas de SaaS enquanto “as empresas de software com nuvens continuam vendo aceleração na demanda.”
A Salesforce, uma empresa de SaaS candidata a ser impactada por essa transformação, vem procurando se ajustar.
Líder em customer relationship management (CRM), vem desenvolvendo seu próprio agente de AI – o Agentforce – para se manter à frente. Esse, no entanto, é um mercado em que ela compete com outras gigantes, como a Microsoft.
Em entrevista recente à Bloomberg, Marc Benioff, o CEO da Salesforce, disse que a empresa está acelerando o uso de AI, e que a tecnologia já automatizou entre 30% e 50% do trabalho.
“Temos que compreender que a AI pode fazer algumas coisas que fazíamos anteriormente e que assim poderemos gerar mais valor,” disse ele.
Por ora, os investidores não estão convencidos. As ações da Salesforce desabam 30% no ano.
Outra empresa de software duramente castigada é a Monday – queda de 23% no ano – cujo modelo de negócio também está sendo ameaçado pela AI.
“Os valuations de software continuam sob pressão por causa da narrativa de ‘morte do software devido à AI,’ o que provavelmente trará volatilidade contínua no curto prazo,” escreveram analistas da RBC Capital Markets, segundo a Bloomberg.
No caso específico da Adobe, Reitzes cita a emergência de competidores como Figma, Canva e Runway, além dos próprios provedores de nuvem – como o Google – que podem “facilmente criar ferramentas impressionantes de geração de imagem e vídeo.”
A consultoria prevê fortes revisões para baixo nos resultados da Adobe nos próximos trimestres, e reduziu seu preço-alvo para o papel de US$ 400 para US$ 310.
A ação fechou hoje em US$ 349 depois de uma queda acentuada no início da semana, depois da publicação do relatório.
Mas a divulgação de um guidance mais favorável, sinalizando uma recuperação, reduziu as perdas nos últimos dias. Ainda assim, a queda supera 20% desde o início do ano, enquanto o Nasdaq sobe 14%.
Muitos analistas já questionam a racionalidade dos múltiplos de algumas empresas – principalmente das Magnificent Seven.
Mais uma vez, a história ecoa o texto de Andreessen publicado há 14 anos.
“Em vez de questionar constantemente os ‘valuations,’ vamos tentar entender como a nova geração de empresas de tecnologia está fazendo o que faz, quais são as consequências para as empresas e a economia e o que podemos fazer para expandir o número de novas empresas de software inovadoras criadas nos EUA e ao redor do mundo”.